Madonna vive por suas próprias regras. Desde que conquistou fama e excelência no final da década de 1980 e retornou às glórias nos primeiros anos do novo milênio, a artista mostrou para o mundo que não precisa mais se provar para ninguém. A icônica Rainha do pop continua a influenciar diversos cantores e, mesmo com os problemáticos ‘MDNA’ e ‘Rebel Heart’, nunca deixou de experimentar coisas novas e se afastar dos convencionalismos da indústria musical. E partindo desse princípio, ela retorna quatro anos depois de seu último lançamento com o bizarro e envolvente ‘Madame X’, atirando para todos os lados e, eventualmente, alcançando uma beleza musical que oscila do visceral ao cínico – ainda que enfrente alguns obstáculos no meio do caminho.
A cantora já havia nos presenteado com uma pequena prévia do que podíamos esperar em seu décimo quarto álbum. “Madame X é uma agente secreta. […] Ela é uma dançarina. Uma professora. Uma chefe de estado. Uma dona de casa”, comentou em entrevista ao site Rolling Stone meses atrás. Bom, sua sempre impecável narrativa resultou em uma múltipla aderência a diversos estilos, passeando entre o reggae, o synth-pop, o trap, ao longo de quinze faixas que de alguma forma se aglutinam organicamente em um único contexto.
A faixa de abertura já nos mostra que Madonna sempre pensa em sua renovação – e que fique bem claro que sua nova obra é apenas inovadora dentro de sua carreira, visto que os vários gêneros supracitados já foram explorados por outros artistas. “Medellín” une duas gerações diferentes em um delicioso reggaeton que seria muito melhor construído apenas com uma voz. Porém, visto que ela divide os holofotes com Maluma, é mais que natural que ambos desfrutem de um protagonismo igualitário, mas não é isso o que acontece: o cantor toma conta da composição e a lead singer, por sua vez, perde força por um abuso desnecessário do autotune que mancha a composição geral. De qualquer forma, o resultado final é aprazível, mergulhando em elementos que retornam com força para “La Isla Bonita” (vide ‘True Blue’).
“Dark Ballet” já enfrenta outros problemas. A concepção visual é impecável (o clipe facilmente entra para um dos melhores de toda a videografia da artista) e emprega referências seculares dentro de um microcosmo atual, navegando com destreza por críticas sociais. Musicalmente, ela não funciona: Madonna tenta com força seguir os passos de uma rapsódia, misturando o orquestral toque do piano e do violino a uma investida techno dissonante que logo se rende ao inexplicável ‘Quebra-Nozes’ de Piotr Tchaikovsky. Apesar da poderosa letra, a track nunca alcança o poder que almeja – ao menos não por conta própria. Quando aliada à investida imagética, sua completude é inenarrável e catártica, mas a proposta do álbum, de fato, não é esta.
A artista volta a nos surpreender nos momentos mais inimagináveis e, sem sombra de dúvida, longe de sua zona de conforto: “Crave”, seu mergulho no trap ao lado de Swae Lee é uma peça animalesca, primitiva, que, como a própria lead repete várias vezes, fala “sem medo” sobre os nossos anseios – isso sem perder sua originalidade e uma sutil sedução. Até mesmo em “I Rise”, faixa que se inicia com poderoso discurso da ativista Emma González, Madonna volta para uma desconstruída balada com uma força inspiradora cujo único mínimo obstáculo é a linearidade instrumental, a qual deixa de lado os ápices em prol de uma entrega mais retórica.
A necessidade de se manter num escopo chocante, beirando a excentricidade, encontra terreno fértil em, talvez, outra canção: “God Control” insurge como uma track que nos guia sensorialmente através de uma jornada psicodélica que se inicia com o retumbante piano e abraça um anacronismo funcional que nos lança direto para o dance e o disco-pop próprios da principal referência artística da cantora. Aqui, diferente das entregas anteriores, esse crescendo funciona mais do que imaginaríamos, alcançando um aplaudível nível de nostalgia.
Madonna não mede esforços para se conectar com a cultura latina, cultivando um apreço pela sonoridade indígena com “Batuka”, que segue uma delineação dialógica com a atmosfera mística dos tambores e do coro repetitivo, ambos aliados com a presença um tanto quanto fragmentária dos sintetizadores – cujo uso poderia ser um pouco mais comedido. Ela retorna com seus ritmos propositalmente dançantes em “Bitch I’m Loca”, retomando a parceria com Maluma com pesados e sensuais elementos que automaticamente tiram-nos os pés do chão e nos convidam para dançar. Até mesmo a colaboração com Anitta nos chama a atenção – muito mais pela incomparável rendição ao funk e ao samba e ao fato da lead arriscar versos em português que funcionam em quase sua completude.
Ela também não perde a oportunidade de voltar para suas origens mais de uma vez. Além de “God Control”, a artista encontra espaço o suficiente para arquitetar uma versão modernizada de uma Madonna no ápice de sua carreira nos primeiros anos da década de 1990 com “I Don’t Search I Find”, buscando elementos do dance e mantendo uma estrita relação com ‘Erotica’. A track já abre com a frase de impacto “finalmente, chega de amor” – ótima e memorável o suficiente para terminar esta mais nova jornada.
O álbum é praticamente um resumo frenético da eterna e irrefreável carreira de um dos pilares da música contemporânea, numa abrangência assustadora ao mesmo tempo que se mantém coeso e bem estruturado em sua maior parte. E, já que estamos falando da versão deluxe de ‘Madame X’, é imprescindível que os fãs se deliciem com a tétrica e confessional “Extreme Occident” – uma agridoce viagem mística e catártica.
Nota por faixa:
- Medellín (with Maluma) – 3,5/5
- Dark Ballet – 2,5/5
- God Control – 4/5
- Future (with Quavo) – 4/5
- Batuka – 3/5
- Killers Who Are Partying – 4,5/5
- Crave (with Swae Lee) – 5/5
- Crazy – 4/5
- Come Alive – 4/5
- Extreme Occident – 5/5
- Faz Gostoso (feat. Anitta) – 4/5
- Bitch I’m Loca (feat. Maluma) – 4,5/5
- I Don’t Search I Find – 5/5
- Looking For Mercy – 3,5/5
- I Rise – 4,5/5