FUSÃO DE MARVEL E NETFLIX RESULTA EM UMA DAS MAIS INTERESSANTES SÉRIES DE SUPER-HERÓIS JÁ FEITAS
Depois de solidificar a marca e transformar o subgênero indicativo no maior filão da indústria cinematográfica hollywoodiana, a Marvel Studios decidiu investir também em outra grande mídia do meio audiovisual, o sistema televisivo. Este que vem atingindo enormes índices de audiência e, pela quantidade de material produzido, chega a alcançar e muitas vezes até superar os números da sétima arte.
A primeira empreitada do estúdio, Agents of S.H.I.E.L.D. (2013), apesar de ser bastante aguardada, não teve uma boa recepção por parte da crítica e do público. O programa simplesmente não funcionava, a história não envolvia, as tomadas de ação deixavam a desejar e os atores possuíam visíveis limitações artísticas. Foi preciso cerca de quinze episódios e contar com a ajuda de um longa do universo para enfim o troço despertar interesse. Hoje a realidade é bem diferente, a segunda temporada vem sendo elogiada e audiência só cresce.
Já com Agent Carter (2015), mesmo não alcançando números estrondosos, a produtora não teve problemas e conseguiu entregar oito primos episódios que foram bem recebidos e só acrescentaram tematicamente. Além da forte presença de Hayley Atwell como Peggy Carter, o show impressionou pelo belo design de produção e estética apurada.
Ainda no ano de estreia do programa do agente Phil Coulson, a Marvel havia anunciado que, em parceria com a Netflix, faria quatro novas séries: primeiro viria o Demolidor, seguido por Jessica Jones, Punho de Ferro e Luke Cage. Por fim, dando origem ao que futuramente irão chamar de Os Defensores. O anuncio prévio gerou duvida entre alguns fãs sobre a realização nubente, mas, diferente da concorrente DC/Warner, a empresa comandada por Kevin Feige, felizmente cumpre suas promessas.
Desde a última sexta-feira (10), a Netflix disponibilizou em sua grade – em HD, como de costume – treze episódios (ou a primeira temporada) da nova série do Homem Sem Medo, concebida e produzida por Drew Goddard e Steven S. DeKnight. E, correspondendo às expectativas, o show já é um sucesso total, pois conseguiu inovar e acertar em vários aspectos. Trazendo, inclusive, novos públicos para o mundo explanado em questão.
Tido como o primeiro material de classificação indicativa para maiores, a obra tem em sua principal identidade a visão obscura do submundo do crime, brilhantemente simbolizada pelo já conhecido bairro chamado de Cozinha do Inferno (Hell’s Kitchen, no original), onde a violência e corrupção são fatores latentes; ou mesmo exibir uma atmosfera sombria que é evidenciada por um melancólico design de produção e uma negra fotografia que imediatamente remete a estética de filmes neo-noir. O grafismo de algumas mortes chega também chocar a plateia: fraturas expostas, tiros a queima roupa e surras que ocasionam desmaios são o de menos aqui. O gore se faz presente, porém nunca soa galhofa.
Muito dessa concepção visual que permeia a mise-en-scéne, teve como base o trabalho do ilustrador búlgaro Alex Maleev, que em sua passagem nos quadrinhos do Demolidor, no início dos anos 2000, onde, ao lado do roteirista Brian Michael Bendis – outro que também foi grande influência para os showrunners –, deu às histórias um tom mais policial e investigativo, além de toda proposta urbanista. Levando o personagem ao limite físico e psicológico, em excelentes arcos como Revelado, O Rei da Cozinha do Inferno e Decálogo. O que também ocorre aqui, e não só com a figura central, todos vivem num carma sem fim, o lugar parece não ter salvação.
Para apresentar a origem de Matt Murdock e companhia, a dupla Goddard e DeKnight utiliza, inicialmente, a mesma estratégia vista em Arrow (2012), quando através de duas linhas narrativas desenvolvem a trama atual e exploram a fundo casos passados envolvendo o protagonista e os demais personagens do conto. Um artificio comum, mas que geralmente funciona – o caso do sétimo episódio, quando vemos o mestre Stick ensinar o pequeno Murdock a lidar com a dura vida. Alguns diálogos desse andamento são praticamente tirados da história O Homem Sem Medo, escrita por Frank Miller e quadrinizada por John Romita Jr., ambos, nomes que foram recorrentes nas publicações do Diabo Vermelho.
A bem da verdade, a (boa) trama em si não faz o espectador a ficar vidrado logo de cara, esta função fica a cargo das empolgantes cenas de luta corpo a corpo. Uma das primeiras aventuras do herói acontece num cais escuro, repleto de containers e bandidos – algo bem parecido com a que vimos no Batman Begins (2005) –, onde o advogado cego enfrenta no braço os meliantes, em batalhas muito bem coreografadas e cheias de impacto.
Aliás, a tomada final do segundo episódio é de uma beleza cinematográfica rara na TV mundial. O diretor Phil Abraham entrega uma cena repleta de simbolismos, que se passa num estreito corredor e é realizada através da simulação de um plano-sequência, quando vemos uma sala cheia de capangas e o Demolidor chegando para enfrenta-los, ainda se recuperando de um combate recente. A veracidade do momento não se dá apenas pelo estilo escolhido, mas também no modo propositalmente desleixado que as pancadas são destacadas. É de fato alguém sozinho batendo e apanhando. O andamento nos faz lembrar a icônica passagem do corredor em Oldboy (2003).
Tudo bem auxiliado por uma minuciosa direção de arte, que igualmente chama atenção pela sofisticação estética evidente. Algo que pode ser notado na abertura do seriado, engendrada pelos mesmos autores que fizeram os créditos iniciais da magnifica True Detective (2014), quando simulam uma visão sangrenta de toda cidade.
Um dos maiores acertos da série é a escolha do elenco. Todo casting, certamente, foi selecionado a dedo, é difícil achar alguém que não desempenhe bem sua função. Mesmo personagens de núcleos distintos, como o repórter Ben Urich, vivido pelo ótimo Vondie Curtis-Hall, são desenvolvidos tridimensionalmente. Em pouco tempo, sabemos que Urich é um sujeito dedicado ao trabalho (mesmo isso o afetando neurologicamente), que está cansado da rotina e que sua mulher tem um delicado problema de saúde. Impedindo, dessa forma, que o sujeito não largue o que faz.
Da mesma maneira é explorado também o desprezível Wilson Fisk, um homem sem escrúpulos, assassino cruel e chefe do crime organizado, mas que devido o passado doloroso destacado, vemos sua figura ser humanizada. O que fez o escritor David Mack, em sua fase pela revista do Demônio da Guarda. E como era de se esperar, o ator Vincent D’Onofrio (conhecido por seu icônico papel no jovem clássico Nascido Para Matar) não deixa por menos e oferece um vilão à altura do ícone pop que leva a alcunha de Rei do Crime. Talvez este seja o antagonista mais fascinante da Marvel Studios, até agora.
O trio formado por Matt Murdock (Charlie Cox), Karen Page (Deborah Ann Woll) e Foggy Nelson (Elden Henson) também é uma atração à parte. Quase como um involuntário triangulo amoroso, criando uma deveras estranheza, tanto Murdock, quanto seus amigos tem arcos e personalidades bem desenvolvidas. Figuras táteis que facilmente criam o processo de identificação, até pelo empenho e envolvimento dos atores.
Por sinal, Cox, afora estar fisicamente preparado, tem muita força e carisma e convence como advogado e vigilante. A química com o Nelson de Henson é quase instantânea, podendo ser mais bem notada no décimo episódio da temporada, quando nos é apresentado a adolescência dos dois, em plena época de faculdade. Os trajes usados pelo herói também são fieis ao que vemos nos quadrinhos, e mesmo numa atmosfera tão séria e pesada, não pintam ridículos em tela.
Com o viajar da trama, a tensão aumenta sobre os personagens e a atmosfera da Cozinha do Inferno fica cada vez mais densa. Os casos parecem incorrigíveis, o vilão intocável e um embate entre Matt e o que podemos chamar de maior símbolo da organização Tentáculo, deixa o protagonista quase imobilizado. Os caminhos parecem cada vez mais intricados e o público se ver aflito diante de tudo. No entanto, a resolução para o caso vem de maneira súbita, primitiva e agressiva. Ao mesmo tempo em que é acompanhada pela verdadeira lei. Trazendo uma ambiguidade interessantíssima à trama e tornando a série ainda mais atraente, do ponto de vista temático e artístico. Assim, esperamos que as demais obras da Marvel, dentro da mídia, sigam um pouco do que foi esta surpreendente adaptação do Demolidor, que juntou várias fases da nona arte e ainda conseguiu ser absolutamente original.