sábado , 21 dezembro , 2024

Crítica | Deslembro – A Página Infeliz da Nossa História

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Deslembro‘ traz às telas a história de uma famílias destacando, sobretudo o impacto do período da ditadura brasileira no desenvolvimento de crianças e jovens desgarrados de suas origens. É um filme que fala sobre o amadurecimento duro mesmo dentro de um núcleo familiar amoroso.

Em uma família exilada na França em função do regime militar, Joana (Jeanne Boudier) vive com sua mãe (Sara Antunes), seu padrasto (Marcio Vito), seu enteado e seu meio irmão. O processo de anistia no final da década de 1970 motiva o retorno desse núcleo familiar à América Latina. A contragosto, a jovem que cresceu e estabeleceu suas relações no país que a recebeu junto a sua mãe se vê obrigada a morar no Rio de Janeiro e a reestabelecer seus laços com o seu país.  O longa-metragem, ao narrar as mazelas do período, opta por contar a história a partir da perspectiva de uma jovem adolescente, em seu processo de descobrimento da sexualidade e liberdade que divide espaço com o difícil descobrimento de sua própria história. Filha de um desaparecido político, Joana se vê obrigada a confrontar seu passado.



As diversas línguas faladas dentro da casa do núcleo principal do filme mostram a forma confusa como a vida pode se organizar nas situações de exílio político – uma escolha interessante da diretora e roteirista Flávia Castro. O francês, língua do lugar que recebeu tantos durante o regime militar, divide espaço com o português, língua natal de Joana e sua mãe, e o espanhol, língua falada por seu padrasto e seu enteado. As línguas se mostram como uma forma de manter a aproximação entre esses indivíduos e suas raízes, ao mesmo tempo que também é usada para reforçar o descontentamento da protagonista frente a seu retorno compulsório para o Rio de Janeiro. O jogo com as línguas abre espaço para uma brincadeira interessante que é o uso do termo “deslembro” na descrição do sentimento de Joana em relação a si e sua trajetória. A escolha dessa palavra tão pouco utilizada traz uma relação com a intimidade da história contada, e é, nessa mistura de referências linguísticas com o berço latino, uma opção de título poética e carregada de significado prático.

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As cenas que apresentam as lembranças da primeira ou segunda infância de Joana são exibidas em cortes, na perspectiva da criança. As imagens difusas surgem da altura do olhar da personagem ainda muito pequena, dificultando a concepção de lembranças mais completas, consistentes. Isso reforça a confusão da menina entre o real e o imaginário criado sobre seu passado, não ficando claro ao público o que, dentre a onda de memórias, de fato foi vivenciado pela personagem e o que é fantasia, em sua busca por reconstituir sua história. O afastamento do Brasil para ela não foi somente um exílio para segurança física, mas uma forma de guardar suas poucas e confusas recordações em um lugar profundo dentro de si, se protegendo da dor.

O retorno ao Rio de Janeiro mostra na adaptação da jovem um momento de reconexão consigo, com suas origens. É forte a forma como mudam suas perspectivas e suas relação, especialmente com a personagem de sua mãe e de sua (até então desconhecida) avó (Eliane Giardini). As figuras maternas, dentro do quadro confuso de referências afetivas de Joana, mostram sua força no lugar do abrigo e do cuidado, que se expressa de diferentes formas ao longo do processo de adaptação da família.

O papel do feminino é trabalhado sob uma ótica gentil – o que era de se esperar, uma vez que se trata de um filme praticamente todo realizado por mulheres (dentro de suas sensibilidades). ‘Deslembro fala das vivências de mulheres em situações extremas, e, partindo desse contexto, como elas estabelecem suas relações, como mudam suas visões de mundo e sociedade, e como se reinventam. Esse olhar feminino sobre a vida se manifesta no longa em diversas perspectivas, mesmo ao tratar as personagens individualmente: Joana, a mais jovem, se descobre enquanto filha, neta e também irmã zelosa; sua mãe percorre caminhos árduos enquanto mulher, esposa, mãe e ativista; e, por fim, Lucia, traz uma leveza no papel da avó. E em todos esses locais de fala e descoberta são abordadas dores e também doçuras das relações íntimas e sociais. Dentro do entendimento do lugar da mulher no período histórico retratado, Flávia Castro é muito feliz ao trabalhar o papel feminino nas lutas revolucionárias, especialmente quando envolve filhos. Fica muito nítido a separação de gênero nas relações domésticas que, invariavelmente, se desdobram nas possibilidades de luta política.

A trilha sonora tem uma função interessante no decorrer da narrativa. Além do uso de recursos de áudio que ressaltam os sentimentos e confusões de Joana, a utilização de músicas famosas à época cria contextos nos momentos da vida da jovem protagonista. Inicialmente, a trilha avigora a necessidade de introspecção e busca por se manter no seu espaço de segurança e afeto (que materialmente é representado pela França e seu padrasto, quem lhe empresta um walkman). Já no Brasil, a escolha musical fortalece o sentimento de reencontro de origens junto ao (re)descobrimento da beleza e das possibilidades de sua terra natal (o que se expressa pelo gosto que toma pela MPB e pelo samba, junto ao descobrimento da paixão com o jovem Ernesto).

A película do filme por vezes traz uma pegada mais retrô, remetendo o público à época tratada na história. Como é comum à produção com menores orçamentos, ‘Deslembro‘ trabalha muitas cenas com câmera na mão e quadros mais fechados. Essa condição soube ser bem utilizada, dando ao público cenas que o aproxima dos sentimentos de Joana.

O filme conta com um elenco poliglota cuja preparação merece destaque, especialmente ao falar das crianças e jovens. A narrativa apresenta poucos personagens, mas que estabelecem relações profundas, o que foi muito bem traduzido em cena pelos atores.

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Deslembro‘ traz às telas a história de uma famílias destacando, sobretudo o impacto do período da ditadura brasileira no desenvolvimento de crianças e jovens desgarrados de suas origens. É um filme que fala sobre o amadurecimento duro mesmo dentro de um núcleo familiar amoroso.

Em uma família exilada na França em função do regime militar, Joana (Jeanne Boudier) vive com sua mãe (Sara Antunes), seu padrasto (Marcio Vito), seu enteado e seu meio irmão. O processo de anistia no final da década de 1970 motiva o retorno desse núcleo familiar à América Latina. A contragosto, a jovem que cresceu e estabeleceu suas relações no país que a recebeu junto a sua mãe se vê obrigada a morar no Rio de Janeiro e a reestabelecer seus laços com o seu país.  O longa-metragem, ao narrar as mazelas do período, opta por contar a história a partir da perspectiva de uma jovem adolescente, em seu processo de descobrimento da sexualidade e liberdade que divide espaço com o difícil descobrimento de sua própria história. Filha de um desaparecido político, Joana se vê obrigada a confrontar seu passado.

As diversas línguas faladas dentro da casa do núcleo principal do filme mostram a forma confusa como a vida pode se organizar nas situações de exílio político – uma escolha interessante da diretora e roteirista Flávia Castro. O francês, língua do lugar que recebeu tantos durante o regime militar, divide espaço com o português, língua natal de Joana e sua mãe, e o espanhol, língua falada por seu padrasto e seu enteado. As línguas se mostram como uma forma de manter a aproximação entre esses indivíduos e suas raízes, ao mesmo tempo que também é usada para reforçar o descontentamento da protagonista frente a seu retorno compulsório para o Rio de Janeiro. O jogo com as línguas abre espaço para uma brincadeira interessante que é o uso do termo “deslembro” na descrição do sentimento de Joana em relação a si e sua trajetória. A escolha dessa palavra tão pouco utilizada traz uma relação com a intimidade da história contada, e é, nessa mistura de referências linguísticas com o berço latino, uma opção de título poética e carregada de significado prático.

As cenas que apresentam as lembranças da primeira ou segunda infância de Joana são exibidas em cortes, na perspectiva da criança. As imagens difusas surgem da altura do olhar da personagem ainda muito pequena, dificultando a concepção de lembranças mais completas, consistentes. Isso reforça a confusão da menina entre o real e o imaginário criado sobre seu passado, não ficando claro ao público o que, dentre a onda de memórias, de fato foi vivenciado pela personagem e o que é fantasia, em sua busca por reconstituir sua história. O afastamento do Brasil para ela não foi somente um exílio para segurança física, mas uma forma de guardar suas poucas e confusas recordações em um lugar profundo dentro de si, se protegendo da dor.

O retorno ao Rio de Janeiro mostra na adaptação da jovem um momento de reconexão consigo, com suas origens. É forte a forma como mudam suas perspectivas e suas relação, especialmente com a personagem de sua mãe e de sua (até então desconhecida) avó (Eliane Giardini). As figuras maternas, dentro do quadro confuso de referências afetivas de Joana, mostram sua força no lugar do abrigo e do cuidado, que se expressa de diferentes formas ao longo do processo de adaptação da família.

O papel do feminino é trabalhado sob uma ótica gentil – o que era de se esperar, uma vez que se trata de um filme praticamente todo realizado por mulheres (dentro de suas sensibilidades). ‘Deslembro fala das vivências de mulheres em situações extremas, e, partindo desse contexto, como elas estabelecem suas relações, como mudam suas visões de mundo e sociedade, e como se reinventam. Esse olhar feminino sobre a vida se manifesta no longa em diversas perspectivas, mesmo ao tratar as personagens individualmente: Joana, a mais jovem, se descobre enquanto filha, neta e também irmã zelosa; sua mãe percorre caminhos árduos enquanto mulher, esposa, mãe e ativista; e, por fim, Lucia, traz uma leveza no papel da avó. E em todos esses locais de fala e descoberta são abordadas dores e também doçuras das relações íntimas e sociais. Dentro do entendimento do lugar da mulher no período histórico retratado, Flávia Castro é muito feliz ao trabalhar o papel feminino nas lutas revolucionárias, especialmente quando envolve filhos. Fica muito nítido a separação de gênero nas relações domésticas que, invariavelmente, se desdobram nas possibilidades de luta política.

A trilha sonora tem uma função interessante no decorrer da narrativa. Além do uso de recursos de áudio que ressaltam os sentimentos e confusões de Joana, a utilização de músicas famosas à época cria contextos nos momentos da vida da jovem protagonista. Inicialmente, a trilha avigora a necessidade de introspecção e busca por se manter no seu espaço de segurança e afeto (que materialmente é representado pela França e seu padrasto, quem lhe empresta um walkman). Já no Brasil, a escolha musical fortalece o sentimento de reencontro de origens junto ao (re)descobrimento da beleza e das possibilidades de sua terra natal (o que se expressa pelo gosto que toma pela MPB e pelo samba, junto ao descobrimento da paixão com o jovem Ernesto).

A película do filme por vezes traz uma pegada mais retrô, remetendo o público à época tratada na história. Como é comum à produção com menores orçamentos, ‘Deslembro‘ trabalha muitas cenas com câmera na mão e quadros mais fechados. Essa condição soube ser bem utilizada, dando ao público cenas que o aproxima dos sentimentos de Joana.

O filme conta com um elenco poliglota cuja preparação merece destaque, especialmente ao falar das crianças e jovens. A narrativa apresenta poucos personagens, mas que estabelecem relações profundas, o que foi muito bem traduzido em cena pelos atores.

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