‘Devs’ não é o tipo de série que você entende completamente após assistir ao primeiro episódio. Ou aos dois ou três primeiros, talvez.
Em vez disso, a nova ficção científica criada e dirigida por Alex Garland (‘Ex Machina’, ‘Aniquilação’) gasta o seu tempo dando uma volta ao redor do sol antes de assentar junto ao espectador. O método e a aura misteriosa e um pouco mística não devem ser elementos realmente novos para a audiência já habituada às obras anteriores do autor. Garland tem uma forma de dizer através do indizível, de evocar emoções provocadoras quando prefere que seu público sinta ao invés de entender racionalmente.
Por isso, ‘Devs’ é diametralmente oposta ao recente sucesso alemão da Netflix, ‘Dark’, por exemplo. Embora as duas séries tratem da relação entre a realidade e visão de mundo — e façam isso de forma deliberadamente confusa —, a produção do FX é menos sobre o processo de observação e catalogação dos detalhes e mais sobre a sensação de esmagamento a partir das escolhas que fazemos. O resultado uma investigação perturbadora e assombrosa da psique humana.
A trama acompanha Lily Chan (Sonoya Mizuno), uma engenheira de computação que trabalha na Amaya, uma companhia de tecnologia do Vale do Silício. Quando seu namorado, Sergei (Karl Glusman), é recrutado para a divisão Devs dessa mesma companhia, ele passa a trabalhar em um projeto misterioso que está no centro da trama. Mas ele desaparece misteriosamente, e Lily decide investigar o caso e o CEO da companhia, Forest (Nick Offerman), que ela acredita estar ligado ao sumiço.
Em algum momento do primeiro episódio, quando Karl conhece as instalações da Devs e enfim descobre o que ela faz — não que alguém tenha explicado, ele precisa olhar os documentos e entender sozinho, e o público fica no escuro de propósito —, ele diz: “Mas isso muda tudo. Se isso for verdade, então muda tudo.”
Despreocupado, Forest responde: “Não. Se isso for verdade, então não muda absolutamente nada.”
Em síntese, este é o espírito da série.
Para conduzir essa investigação independente, Lily conta com a ajuda do ex-namorado, Jamie (Jin Ha), e ela vai se aproximando cada vez mais do próprio Forest, testando os limites do CEO enquanto ele mesmo testa os dela. É dessa forma que passamos a entender melhor quem é este homem e onde estão as origens de seus interesses, algo que tem relação direta com sua esposa e a filha. Laços familiares e emotivos, portanto, nunca estão fora de vista em todo o desenvolvimento da narrativa. A todo momento, o público é lembrado que deve prestar mais atenção em quem são aquelas pessoas do que tentar descobrir o que Devs faz.
E é a partir disso que, aos poucos, a recompensa vem e começamos a compreender quais temas estão sendo trabalhados em ‘Devs’.
De uma forma complementar à filmografia de Garland, a série utiliza a relação dos personagens (e, por consequência, a nossa) com a tecnologia não para tratar de dependência ou vigilância constante, mas para estudar os efeitos e possibilidades dos avanços da modernidade sobre a forma como nos enxergamos no mundo. Trata-se de uma investigação sobre os nossos instintos básicos de existência, uma investigação lenta que faz mais sentido se o espectador se libertar de determinadas amarras impostas subjetivamente. Em ‘Ex Machina’, Nathan (Oscar Isaac) provoca Caleb (Domhnall Gleeson) com uma pintura de Jackson Pollock o diálogo nos ajuda a compreender o que exatamente o autor quer que se faça aqui.
“Você conhece este cara, certo? Jackson Pollock. Ele esvaziava a mente, e deixava a mão ir onde quisesse. Não de forma deliberada, nem aleatória, mas algo entre as duas coisas (…) E se ao invés de fazer arte sem pensar, ele tivesse dito: ‘Quer saber? Não posso pintar nada a não ser que eu saiba exatamente o que estou fazendo.’ Você sabe o que teria acontecido?”
E Caleb prontamente responde: “Ele nunca teria deixado a sua marca.”
Esta também é a forma como Garland prefere trabalhar, e o método às vezes também transforma seus filmes ou a série em suas próprias versões do expressionismo abstrato de Pollock. Os temas de controle, vigilância, trauma, luto, sobrevivência e a existência ou não de limites muitas vezes assumem um viés esotérico e contemplativo, reforçado pela trilha sonora muito densa e perturbadora. Assim como um quadro de Pollock, às vezes essa junção reúne informações demais para alguém absorver de uma vez, e isso pode ser sentido sobretudo na primeira metade dos episódios.
Mas o propósito não é que o público termine de assistir aos 8 episódios (todos escritos e dirigidos pelo próprio Alex Garland) capaz de escrever um tratado de física ou da relação entre ciência e fé, mas sim que consiga identificar as partes da história com as quais mais se conecta, e que entenda o porquê. Não é um caminho de respostas fáceis, e entendê-las é mais sensorial que racional. Isso que faz de ‘Devs’ tão pertinente.
Os episódios de ‘Devs’ estão disponíveis no Fox Play.