O que é a beleza? O que é a felicidade? Ambos esses elementos estão condicionados e intrinsecamente ligados: se belo, então feliz; se feliz, então belo? Numa sociedade que se governa em prol da estética – e de uma estética cada vez mais monocromática – que lugar é destinado àqueles e àquilo que não se enquadram nesses moldes? Seria uma resistência ser feio e feliz? Belo e triste? Tudo aquilo que não se enquadra nesse padrão de beleza seria automaticamente rejeitado pela sociedade? Esses questionamentos parecem um impulsionar o mote do novo filme de Wim Wenders, ‘Dias Perfeitos’, que competiu esse ano no Festival de Cannes e teve exibição prévia no Festival do Rio 2023.
Hirayama (Kôji Yashuko) acorda todos os dias com os primeiros raios de sol e pratica a mesma rotina: barbeia-se, veste-se, pega algumas moedas, compra um café gelado numa máquina e dirigi até o trabalho. Todos os dias ele é responsável por limpar, higienizar e adequar 17 banheiros públicos instalados na capital Tóquio. Todos os dias os mesmos locais, os mesmos movimentos, os mesmos produtos. Respeitoso, sempre que alguém quer utilizar o sanitário, Hirayama prontamente se afasta, para que a pessoa possa utilizá-lo. Na hora do seu almoço, senta-se em um banco de pedra num jardim de um templo de budismo e fotografa a copa das árvores: sempre o mesmo almoço, o mesmo banco, as mesmas árvores. Até o dia em que uma visita inesperada quebra a sua rotina e evidencia seu modo de viver.
Meditativo, contemplativo e repetitivo, Wim Wenders consegue transformar o seu filme em algo poético mesmo quando o espectador sabe que irá ver tudo de novo acontecer na telona. Sem evidenciar a dramaticidade de seu enredo, mas sendo-o, e com bastante ironia, o roteiro dele com Takuma Takasaki esconde as muitas camadas do protagonista perante a iluminação da perfeita fotografia do filme: tudo é muito solar, brilhante, quase que com a saturação estourada, especialmente os tons de branco que, não à toa, remetem a uma ideia de limpeza. Todos os movimentos são comedidos, não há sujeira nem nada sobrando em nenhum enquadramento.
Ao construir um protagonista que é perfeitamente feliz e satisfeito em sua rotina, o longa bota em xeque exatamente a ideia de belo e de felicidade: como pode um sujeito que trabalha limpando banheiros públicos pela cidade ver beleza nisso tudo e ainda por cima ser feliz? Nesse sentido, vale observar todo o entorno desse personagem: além de trabalhar em um emprego desprezado socialmente, um de seus passatempos é ler livros comprados em sebos (ou seja, de uma loja que vende livros usados, desprezados pelos seus donos anteriores) e ele se lava em banhos públicos, locais desprezados por ser destinado à pessoas empobrecidas e que evidencia o privilégio que é ter um chuveiro dentro de casa. Tudo isso se torna ainda mais tocante pela primorosa interpretação de Kôji Yashuko, que, sempre sorrindo, entrega sentimentos e profundidade a este indivíduo não enxergado pelo coletivo.
Indicado para ser representante do Japão ao Oscar 2024 e filmado todo em apenas dezessete dias, ‘Dias Perfeitos’ é forte candidato para levar não somente este, mas outros prêmios em muitas categorias. Por sua iconicidade, é uma obra-prima de Wim Wenders e um convite para rirmos, chorarmos e enxergarmos a vida com mais gratidão e beleza, apesar das adversidades.