No final dos anos 1930, o cartunista Charles Addams dava vida a uma das sagas em quadrinhos mais famosas dos Estados Unidos – ‘A Família Addams’. A narrativa, funcionando de forma antológica, acompanha a família titular, formada por Mortícia, Gomez, Wandinha, Pugsley e outros, e suas incríveis e mórbidas aventuras, servindo como uma sátira bizarra à aristocracia norte-americana que se deleitam com o macabro e, de fato, não ligam para o que as outras pessoas pensam deles. Agora, quase cem anos mais tarde – e um império multimidiático que já rendeu jogos, adaptações literárias, filmes e animações -, somos convidados a retornar para este mundo repleto de arrepios e de eventos sobrenaturais com a ambiciosa ‘Wandinha’, da Netflix.
O show, idealizado pelo famoso realizador Tim Burton, acompanha a personagem titular, aqui encarnada por Jenna Ortega. Com dificuldades de se encaixar em qualquer uma das escolas a que seus pais a enviam, Wandinha é mandada para um famoso internato para crianças especiais e diferentes (ou exilados, como são tratados na produção): a Academia Nunca Mais, comandada pela imponente Diretora Larissa Weems (Gwendoline Christie). Lá, mesmo local em que seus pais se conheceram e, desde então, nunca se separaram, ela descobre que as coisas não são tão fáceis – e que as fortificadas paredes da escola escondem um segredo terrível que ameaça destruir tudo o que conhecem. Logo, cabe à personalidade fria, calculista e desprovida de qualquer emoção da protagonista em proteger aqueles que considera seus amigos e manter o legado da família vivo antes que seja tarde demais.
A série, como já podemos imaginar, é uma celebração do macabro e funciona com fluidez invejável – algo muito bem-vindo, considerando a carreira oscilante de Burton nas telonas. O diretor e produtor aproveitar incursões de grande sucesso de um passado não muito distante, como ‘A Noiva Cadáver’, ‘Sweeney Todd’ e ‘Frankenweenie’, para delinear um universo que, em qualquer outro lugar, seria impossível demais para ter credibilidades. Felizmente, Burton sabe como organizar cada um dos elementos e se alia a um time competente de artistas para dar origem à sua visão, firmando colaboração com os criadores Alfred Gough e Miles Millar e nos encantando do começo ao fim. Claro que o show comete deslizes, ainda mais no tocante aos efeitos especiais, mas um elenco de peso e uma história envolvente são o bastante para nos querer fazer maratonar a temporada de estreia.
O elemento de maior praticidade é o mistério: diferentes dos clássicos longas-metragens dos anos 1990, a ideia aqui é talhar uma estrutura sólida a partir das atemporais jornadas de suspense e de assassinato, eternizadas, por exemplo, por nomes como Arthur Conan Doyle, Agatha Christie ou Edgar Allan Poe (todos, inclusive, sendo mencionados nos episódios). Wandinha não apenas descobre que tem uma capacidade de clarividência despontante, como um terrível monstro que está assolando tanto os moradores da pequena cidade de Jericho, quanto os alunos de Nunca Mais. E, no momento em que se vê parte de uma terrível profecia que está prestes a se cumprir, ela se vê determinada a colocar um fim nisso e a salvar todos. Uma trama que já foi bastante explorada pelo cenário mainstream do entretenimento, mas que é o mote perfeito para esta obra.
Ortega, reafirmando-se como uma das grandes atrizes da nova geração, faz um trabalho fantástico como a personagem titular, deixando de lado suas investidas nos recentes ‘Pânico’ e ‘A Vida Depois’ e mostrando que fez sua lição de casa para viver Wandinha. Ela sabe como navegar pela profunda personalidade da garota, prestando atenção à unidimensionalidade de sua expressão e a como pronunciar cada fala para que a piada seja entendida (um exercício complexo de cadência vocal e de inexpressividade que ditam o tom de cada sequência). Mas ela não está sozinha: Christie, recém-saída de ‘Sandman’, mergulha de cabeça em Weems e nos encanta com sua entrega passivo-agressiva; temos Emma Myers como a sonhadora e ingênua lobisomem Enid Sinclair, uma das principais aliadas de Wandinha; Joy Sunday como a sedutora sereia Bianca Barclay; e Percy Hynes White como o atormentado artista Xavier Thorpe, que tem a habilidade de transformar seus desenhos em realidade.
Isso não é tudo: também somos agraciados com a presença ilustra de Catherine Zeta-Jones e Luís Guzmán como Mortícia e Gomez, pais de Wandinha, cuja história com Weems e Nunca Mais data de muitas décadas e ainda traz marcas traumáticas para o presente. Christina Ricci, que interpretou a filha mais velha dos Addams nos longas-metragens anteriores, foi escalada para viver Marilyn Thornhill, a primeira professora normie da Academia que fica responsável pelas aulas de botânica e que nutre de uma afeição quase maternal por Wandinha – pelo fato de ambas não se encaixarem em nenhum lugar. Mesmo recheado de personagens principais e coadjuvantes, a série sabe como se conduzir entre os altos e baixos para garantir que todos tenham seu momento de brilhar e para que, no final, as tramas confluam para um espetacular e sentimental finale.
A obra não pensa duas vezes antes de pegar elementos emprestados de produções teen que se tornaram bastante populares nos últimos anos – mas não deixa que os clichês falem, e sim que sejam integrados de forma orgânica a algo muito maior. E, considerando que lidamos com um título que tem paixão pelo macabro e pelo sobrenatural, é óbvio pensar que os elementos imagéticos sejam erguidos com essa perspectiva, tanto no prezo por uma simetria taxidérmica, quanto no embate entre cores (que se mostra com clareza na delineação conflitante entre Wandinha e Enid, um artifício para depois uni-las em uma amizade baseada na confiança e no respeito). A trilha sonora parte de investidas similares e permite que o lendário Danny Elfman, colaborador de longa data de Burton, tenha liberdade para remodelar o tema clássico da franquia e pincelá-lo com as notas ecoantes do órgão e do violoncelo.
‘Wandinha’ é uma ótima adição ao catálogo da Netflix e à saga que vem sendo imortalizada ano após ano para as novas gerações. Apesar de alguns problemas de ritmo que podem causar certo desconforto, a jornada é absolutamente incrível, apaixonante e que traz à tona importantes temas para serem discutidos – tudo sem abandonar as raízes que fizeram da personagem um emblema da cultura pop e sem querer dar um passo maior do que consegue.