Uma declaração de amor para musas pioneiras
Não existe ninguém mais apropriado para levar aos cinemas a trajetória de oito das maiores e mais veteranas travestis brasileiras do que a atriz Leandra Leal. Unindo o útil ao agradável, Leal, um dos nomes proeminentes da atualidade quando o assunto é cinema nacional, debuta como diretora de longas-metragens, com um documentário no qual não poderia estar mais em casa.
O passado, vida e história de Leandra Leal estão imensamente conectados às de Rogéria, Jane Di Castro, Divina Valéria, Camille K, Fujika de Halliday, Eloína dos Leopardos, Marquesa e Brigitte de Búzios, todas tema de sua estreia. Tudo porque o palco do teatro Rival, na Cinelândia, Rio de Janeiro, foi um dos primeiros lares a abrigar estas icônicas artistas, parte da geração pioneira de travestis do entretenimento brasileiro, datando da década de 1960.
Américo Leal, dono do teatro e avô de Leandra, renomado empresário do ramo, viu potencial em um espetáculo do tipo, numa época em que apenas países mais evoluídos apreciavam tais artistas. No Brasil, ocorria a época da censura, da ditadura militar, o que dificultava consideravelmente (para dizer no mínimo) o dia a dia e a simples existência de artistas ou qualquer pessoa considerada subversiva. Demonstrando grande coração aberto e mente mais ainda, Leal, o avô, comprou o barulho e acolheu as citadas divas.
Muitos anos depois, Leandra Leal recebe o bastão e mantém a chama viva. Com roteiro da própria, em parceria com Carol Benjamin, Lucas Paraizo e Natara Ney, Divinas Divas é uma carta de amor a estas corajosas artistas, que ficam agora imortalizadas pelos Deuses da sétima arte. Além da declaração, o filme de Leal é uma volta ao passado, funcionando como reflexo e ponte com o presente, em tempos de ainda muita intolerância.
Existe certo didatismo no ensaio, que funciona exclusivamente na forma dos depoimentos de cada uma das Divas, revivendo através de histórias toda a sua jornada. Mesclando as inúmeras dificuldades, tragédias pessoais, relatos emocionantes (como a perda de companheiros) e muito bom humor, a diretora captura a alma de seus tópicos, retratando-as com muita honestidade. É impossível não se envolver, mesmo com o tempo de duração de quase duas horas e certa falta de material de arquivo – sendo a mais sentida, o retrato de uma Cinelândia do passado, funcionando a pleno vapor.
Tirando estes mínimos entraves, o coração de Divinas Divas está tão no lugar, que se torna uma experiência transcendente a apenas assistir a um filme. Leandra Leal as entrevista e consegue fazê-las despejar um pouco de suas essências na película, deixando pouco espaço, ou nenhum, para vontades não supridas do público. Divinas Divas é realmente mais do que um filme, é parte digna e muito necessária da cultura de nosso país.