Com ausência sentida por muitos na categoria de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar deste ano, Em Chamas já chegou em vídeo para ser conferido por quem não teve a oportunidade de vê-lo nos cinemas. Dirigido por Lee Chang-dong, o longa coreano é inspirado em um dos contos do livro Barn Burning de Haruki Murakami e foca nos personagens Jong-soo (Yoo Ah-In), Hae-mi (Jeon Jong-Seo) e Ben (Steven Yeun) durante suas mais de duas horas de duração. A princípio, os mais desavisados podem achar que ele trata apenas sobre um complicado triângulo amoroso do pacato protagonista; no entanto, da metade para a frente, o filme vai além e se revela um suspense cheio de nuances e metáforas.
A história começa quando Jong-soo reencontra Hae-mi, uma antiga amiga, ao acaso na rua. A aproximação é imediata e não demora para que o contato dos dois velhos conhecidos evolua para uma atração mútua que termina em sexo – que é apresentado aqui de forma bem realista pelo diretor; com direito a pausa para o casal procurar e colocar a camisinha, por exemplo. A tensão começa a surgir quando, ao voltar de uma viagem à África, Hae-mi aparece acompanhada por um novo affair – Ben -, para a nossa surpresa e, principalmente, de Jong-soo, que já começava a se envolver emocionalmente com ela. A partir daí, o filme se dedica a focar na estranha aproximação dos três (sim, porque Hae-mi não abre mão da amizade de Jong-soo e o mantém sempre por perto) – até que uma certa revelação sobre “queima de estufas” e o sumiço da personagem vivida pela atriz Jeon Jong-Seo fazem a trama caminhar para um novo rumo (mais interessante e sombrio, diga-se de passagem).
Com ritmo lento, cenas contemplativas e pontas que não se encaixam facilmente, Em Chamas não é o tipo de produção que vai agradar a todo o público. A princípio, pode causar até desinteresse por não deixar claro em seu primeiro ato para onde está conduzindo seus personagens e o que de fato pretende abordar, além de também se apoiar muito na mise-en-scène ao apresentar longas sequências sem nenhum diálogo. Porém, ao pensar nas sutilezas que ajudam a compor o quebra-cabeça deste suspense – como pistas sutis em momentos inesperados (a cena em que Ben pede para Hae-mi perguntar a Jong-soo o que é uma metáfora diz muito sobre toda a estrutura do filme) -, difícil não ver Beoning (título original) como uma obra-prima do gênero. Confiando no espectador e em nenhum momento subestimando sua inteligência, ele não se preocupa em deixar toda a trama mastigada; prefere usar seu tempo para focar na construção dos personagens e a elaborar peças que, quando percebidas, conseguem dar forma ao todo da história.
Outro detalhe que chama atenção no filme de Lee Chang-dong é a fotografia, com destaque para a cena em que Hae-mi dança seminua na contraluz e para o momento em que Jong-soo e Ben conversam sobre as tais estufas queimadas na varanda. Uma curiosidade sobre esta última – além de ser uma das mais importantes do longa – é o fato de ter demorado cerca de um mês para ser finalizada, já que a produção só podia filmar alguns minutos por dia para que conseguisse capturar a luz perfeita para a montagem. O resultado, como não poderia ser diferente, é uma estética que só ajuda a tornar o longa ainda mais interessante (e não seria injusto ou exagero uma indicação na categoria de Melhor Fotografia no Oscar, vale dizer).
O roteiro, assinado pelo próprio diretor Lee Chang-Dong e por Jungmi Oh, também ganha pontos por conseguir criar uma tensão crescente que prende a atenção do espectador durante todo o tempo. Mesmo nos momentos em que a trama caminha de forma mais lenta, sempre fica a sensação de que há algo não-dito pairando no ar – e isso faz com que o interesse pelo enredo fique ainda maior. Além disso, não se limitando apenas ao suspense central, o longa também consegue levantar críticas contra o capitalismo e sobre como é difícil ser mulher na sociedade em que vivemos – seja através de elementos de seu trio central (o escritor idealista versus o ricaço, com uma mulher solitária e deprimida entre os dois) ou de detalhes e diálogos inseridos ao longo do filme (como a imagem de Trump na televisão e a cena em que uma personagem aleatória fala sobre como as mulheres são julgadas por tudo). E não para por aí: o que também evolui durante toda a trama é a performance dos atores, com destaque para o excelente Yoo Ah-in – que começa contido e termina explosivo, como o título indica e como o clímax da produção pede.
Com tudo isso, no fim da longa jornada, Em Chamas aparece como um filme que tem elementos suficientes – tanto técnicos quanto de roteiro – para permanecer na cabeça do público por dias. A última cena, acompanhada por uma trilha sonora que consegue transmitir bem toda a tensão vivida pelo protagonista, é estranhamente libertadora e o desfecho perfeito para o que foi construído durante todo o enredo – embora, como foi feito no decorrer da trama, deixe pontas soltas e questionamentos de certo/errado para que os espectadores tirem suas próprias conclusões. Ponto para o cinema coreano – que aqui, certamente, aparece em uma de suas melhores formas.