Emily Brontë pode ter lançado apenas um livro durante sua vida, mas tornou-se uma das escritoras de maior prestígio e importância da história. Seu romance, ‘O Morro dos Ventos Uivantes’, causou bastante controvérsia quando escrito, principalmente por seu retrato em relação a abusos físicos e psicológicos, bem como a denúncia da hipocrisia da sociedade burguesa vitoriana da época – ora, o livro inclusive inspirou a lendária Kate Bush a assinar a canção “Wuthering Heights”. Agora, Brontë ganha uma merecida dramatização cinematográfica na forma de ‘Emily’, biografia estrelada por Emma Mackey em um papel definidor de sua carreira.
A produção funciona mais como um drama psicológico do que como uma biopic convencional: a cena de abertura traz a protagonista titular prestes a morrer, logo depois de sua obra ser publicada. Sua irmã mais velha, Charlotte (Alexandra Dowling), pergunta a ela o que a levou a escrever a narrativa e, a partir daí, somos transportados para os acontecimentos que a levaram a estruturar uma das maiores jornadas literárias de todos os tempos. Como relatado pelo longa-metragem, Emily sempre foi vista como a “estranha” da família Brontë – alheia aos acontecimentos que importavam para o pai, Patrick (Adrian Dunbar), e com anseios que iam de encontro ao tradicionalismo exacerbado defendido pela sociedade em que estava inserida. Não é surpresa, pois, que acompanhamos a luta da escritora contra os papéis de gênero e contra as expectativas de seus parentes – que exigiam dela uma formação educacional dentro dos parâmetros e uma promissora carreira como professora.
Entretanto, isso não impediu que Emily se desvencilhasse de suas obrigações e deixasse a imaginação correndo solta, sentando-se à escrivaninha que tinha no quarto e deixando que as palavras fluíssem de sua pena. É claro que, considerando o peso de ‘O Morro dos Ventos Uivantes’, a vida de Emily não foi nada fácil: de um lado, seu pai mergulhava em um vórtice de decepção e arrependimento ao não saber lidar com a personalidade fugaz da filha; de outro, a jovem se via às sombras de Charlotte, que se estabelecera como uma figura importante dentro do cenário aristocrático, e também se enxergava como uma má influência para Anne (Amelia Gething), a caçula da casa. O único com quem podia contar era o irmão, Branwell (Fionn Whitehead), cujas aspirações a escritor se refletiam em seu apreço pela baderna, pela bebida e pela rebeldia.
Mas nada poderia prepará-la para a emotiva montanha-russa de que desfrutaria com William Weightman (Oliver Jackson-Cohen), curador e novo pastor da igreja local. A princípio odiando a companhia um do outro (uma inclinação a ‘Orgulho e Preconceito’, de Jane Austen), eles desenvolvem uma ardente paixão que coloca em xeque os valores defendidos – e que, dentro do contexto do filme, a leva a escrever a aclamada obra já mencionada. Vale dizer que o romance entre William e Emily nunca foi comprovado, de fato, mas ajuda a estabelecer a estrutura essencial da produção e serve como um envolvente elemento para guiar o espectador.
A produção é uma grande celebração dos sonhos em seu âmago, erguendo-se sob um véu psicológico que toma mais força à medida que nos aproximamos do final. A brutal e por vezes fúnebre atmosfera se afasta das costumeiras investidas do gênero, como as construções panorâmicas e reflexivas de um campo vazio cheio de gramíneas e árvores de pequeno porte; aqui, cada elemento tem um motivo para existir, cortesia do esplêndido trabalho da estreante Frances O’Connor. Afinal, o espaço aberto é colocado como representação física da expansível mente de Emily, em que ela, por muitas vezes, se vê perdida – e o único a acompanha-la, de fato, é Branwell, visto que ambos compreendem um a outro. As cenas com William, entretanto, migram para lugares fechados, quase claustrofóbicos, como se tudo não passe de uma febre passageira que desperta em Emily algo que nunca sentira.
O’Connor sabe como comandar a produção, mas nada disso seria possível sem a presença luminosa de Mackey. Saindo de seu aclamado papel em ‘Sex Education’ e dos filmes ‘Morte no Nilo’ e ‘Eiffel’, a jovem atriz demonstra ter uma versatilidade invejável ao recuperar os trejeitos de Emily ao mesmo tempo que a pincela com criações únicas. O movimento cíclico, a explosão de sentimentos e o gradativo cansaço que sente encarcerada na própria vida são aspectos entregues apenas com o olhar ou com um singelo movimento das mãos, seja quando busca um jeito de escapar ou realidade ou quando resolve enfrentá-la. A admirável performance, como ocorre mais vezes do que gostaríamos de acreditar, deveria ter mais reconhecimento e poderia render à Mackey algumas indicações na temporada de prêmios.
‘Emily’ não é uma mera cinebiografia, mas uma exaltação do que significa ter medo de alcançar os sonhos por falhas com as expectativas dos outros. Se você tiver a oportunidade de ir ao cinema assistir ao filme, garanto que não vai se arrepender – e pode ser que você se apaixone pela história de Emily Brontë assim como este que vos escreve.