Já não é surpresa para ninguém o fato de que todo ano o Oscar acaba esnobando atuações memoráveis. Desta vez, de acordo com grande parte da crítica especializada e dos cinéfilos mais antenados, o prejudicado foi Ethan Hawke – que merecia ter sido lembrado pela Academia por sua atuação em Fé Corrompida (ou First Reformed, no título original). Saído direto em vídeo no Brasil, o longa de Paul Schrader, que também escreveu o roteiro do aclamado Taxi Driver, pode até ter passado meio em branco por aqui (embora tenha sido lembrado na cerimônia na categoria de Melhor Roteiro Original); no entanto, serviu para confirmar todo o talento do ator para quem ainda tinha dúvidas.
Na trama, Hawke vive o Reverendo Ernst Toller – que, desde a primeira cena em que aparece, não mostra a firmeza e a serenidade esperadas em alguém que vive pela fé. Embora tenha a missão de guiar o “rebanho” da igreja à vida eterna tão pregada na religião, olhos mais atentos percebem que, na verdade, é ele quem precisa de um guia para sair da escuridão em que começa a adentrar e que só piora ao longo do filme. A perturbação inicial se deve à traumas do passado – como a perda do filho que incentivou a se alistar nas forças armadas nos tempos em que era militar – e à saúde que começa a se mostrar debilitada; mas, ao se aproximar de Mary (Amanda Seyfried) e seu marido Michael (Philip Ettinger), Toller começa a se fazer questionamentos que o afastam cada vez mais do caminho da luz para jogá-lo nas trevas, metaforicamente falando.
Com a tela em formato quadrado (4:3), narração em off com os pensamentos do Reverendo enquanto ele se confessa para o papel e longos diálogos com questionamentos religiosos e filosóficos – como na importante cena em que Ernst tenta mudar a cabeça do marido de Mary, um ativista radical que não acredita mais na humanidade -, Schrader consegue nos conduzir em uma jornada de tensão crescente. Muito bem demonstrada pela brilhante atuação de Ethan Hawke, a perturbação que aumenta ao longo do filme e que promove o embate entre luz e trevas faz com que o espectador assista à trama fazendo os mesmos questionamentos levantados pelo protagonista – que, embora tente parecer contido, demonstra com a inquietação do olhar que está prestes a explodir a qualquer momento com tudo o que leva em sua cabeça.
No entanto, ainda que o enredo se desenvolva a partir de uma crise interna do Reverendo, First Reformed consegue falar de forma global por mostrar um personagem que perde a fé na humanidade e sua própria fé – que, até então, era um dos seus maiores bens – ao passar a refletir sobre as mazelas do mundo. Desde a conversa com Michael – que acaba desistindo da própria vida por não ver mais solução ou sentido em estar no planeta -, o personagem de Hawke passa a carregar as mesmas questões que, inicialmente, tentou combater. A morte física do marido de Mary acaba por se tornar uma espécie de morte espiritual para o pastor, e seus demônios internos fazem a trama ganhar peso com questionamentos que vão do intimista para o geral – como “onde vamos parar?” e “ninguém vai fazer nada quanto a isso?”, conforme expressa o próprio personagem em alguns diálogos. Mesmo sendo uma das figuras mais importantes da igreja, ele passa a questionar os interesses do sistema que faz parte e a repensar sua verdadeira missão ao se ver guiando pessoas que, no geral, não sabem valorizar a criação de Deus – tudo isso enquanto sua fé vai sendo cada vez mais corrompida, como muito bem sintetiza o título BR do filme.
Outro importante detalhe da trama é o envolvimento cada vez maior do Reverendo com Mary. Além de sua função na perturbadora cena final – aberta à diversas interpretações – , um destaque da personagem de Amanda Seyfried é o fato dela carregar um filho no ventre em meio a tantos questionamentos sobre valer ou não a pena estar em um mundo que está cada vez mais fadado ao fracasso. Para seu marido que desistiu da vida e de acordo com o lado pessimista do filme, colocar uma criança na Terra é um dos maiores erros que alguém pode cometer, enquanto os mais esperançosos podem enxergar esse gancho como um lembrete de que a humanidade sempre se renova, mesmo em seu estado quase apocalíptico.
Com tudo isso, no fim da jornada que termina em aberto, a nova produção de Paul Schrader aparece como uma aula de estudo de personagem com as tantas camadas do Reverendo protagonista e como uma profunda reflexão sobre a relação da sociedade atual com a religião e com o meio-ambiente como um todo – usando diálogos e elementos da mise-en-scène para isto. Já a brilhante atuação de Ethan Hawke, como mencionado no início, só confirma mais uma vez que a Academia não é lá muito justa mesmo… . Mas, felizmente, um bom trabalho não precisa de prêmios para ser reconhecido e devidamente lembrado. O público agradece.