Cercado pelas ironias e incoerências da vida, Monk é o extrato de um tempo estranho. Vivendo em um hiato temporal onde nunca se produziram tantas “histórias negras”, ele é o que talvez jamais teríamos coragem de verbalizar publicamente. Rancoroso por ser bom demais para uma sociedade culturalmente apaziguada pela produção de estereótipos, ele é o retrato de uma comunidade cansada. É negro, mas não vive da cor de sua pele. Tem suas próprias memórias, mas nenhuma delas condiz com a visão do establishment sobre o pobre bandido que leva uma “thug life”. Culto, inteligente até demais e ávido por ser ouvido, ele se vê preso em suas próprias raízes raciais. E quanto mais tenta fugir delas, mais ele perceberá que é prisioneiro de um sistema que busca representatividade – desde que ela se conforme à torre de mármore do status quo.
Nessa confusão quase existencial, em que Monk é um escritor sem voz ativa, o também professor universitário se vê diante de uma repentina ascensão ao estrelato, ao escrever um romance bem gueto sobre experiências irreais, mas comumente associadas a negros (como pais ausentes, famílias desestruturadas e criminalidade correndo solta). E o que era para ser um mero escárnio para a indústria literária – que só valoriza histórias negras quando excessivamente estereotipadas, acaba se tornando um imenso sucesso de público e crítica. Frente a frente com aquilo que ele mais despreza, ele agora tentará confrontar um sistema errático, enquanto busca provar que sua mais nova obra literária, escrita sob um fantasioso pseudônimo, é de fato uma ofensa a um povo inteiro.
Ficção Americana é irônico logo em seu título. Instigante, ele levanta em nós uma série de questionamentos. Estaríamos mesmo diante de um conto fictício, ou de fato vivemos em um espectro alternativo onde histórias negras e tantas outras são meramente reduzidas a estereótipos? Seria esse reducionismo uma espécie de prisão com barras de ouro, regida por um arquipélago de ‘aliados’ cujo famoso lema é “seja negro, mas o negro que eu determinar”? Essas e tantas outras indagações saltam à mente ao longo de quase duas horas de filme. E nessa jornada tão reflexiva, não passamos ilesos sem desconforto. O cineasta Cord Jefferson estreia na direção e no roteiro afoito para nos levar a um outro lugar, um espaço-tempo onde nos conformamos menos e passamos a questionar mais.
E assim, ele adapta Ficção Americana com brilhantismo, agregando ao argumento do filme suas próprias experiências como um homem negro tentando vencer na indústria cinematográfica. Nos tomando em direção a uma jornada metalinguística, as estruturas de poder de Hollywood são colocadas sob as lentes microscópicas de um cineasta novato e ousado, que não tem medo de cutucar algumas feridas abertas, à medida em que convida a todos para uma conversa honesta sobre o tipo de arte que tem sido produzida atualmente. Com Jeffrey Wright como seu peculiar cavaleiro alado, ele enfrenta salas inteiras de executivos de estúdios, mesas de roteiristas e gabinetes de criação com uma narrativa afiada, precisa e intrigante. E, acima de tudo…profundamente engraçada.
E muito desse humor é mérito de Wright, um artesão da atuação que talha cada personagem à sua maneira. Sempre impecável em tudo aquilo que faz, o astro finalmente ganha seu momento de glória com uma digna indicação ao Oscar, que reflete a maestria de sua habilidade em transitar entre o drama e a comédia. Correndo o risco de ser ardiloso e áspero demais – tamanha sua revolta e frustração -, ele consegue sustentar o carisma de Monk facilmente, nos lembrando que, ao final do dia, ele representa alguns dos pensamentos mais justos de homens e mulheres negros cansados de serem meros tropos narrativos que apenas preenchem tabelas de Excel sobre representatividade.
Ao seu lado, Sterling K. Brown reitera seu enorme talento camaleônico como o irmão mais novo, um médico marcado por um estilo de vida errático e exagerado. E cercado por outros personagens de apoio que ajudam a sustentar os dilemas pessoais e profissionais de Monk, Wright faz de Ficção Americana um experimento único sobre si mesmo, conforme revela novas camadas de seu talento e versatilidade artísticos, ao assumir uma comédia que flerta com o sombrio, mas se entrega a um formato semelhante ao de Alexander Payne. E assim, em pouco menos de duas horas de filme, Jefferson mostra toda sua força como um storyteller, nos embalando em uma crise existencial deliciosa demais para não nos fazer rir.
E permanecendo sempre entre o drama e a comédia, a adaptação do livro ‘Erasure’, de Percival Everett, é uma exímia análise da arte contemporânea em sua plenitude. Muito mais do que ponderar sobre os maneirismos e clichês reciclados da literatura afroamericana, o longa estende essa reflexão para o cinema, quebrando a quarta parede indiretamente, nos encarando nos olhos com seu roteiro e nos confrontando a respeito de talvez sermos ou não parte desse problema. Ácido e irônico em sua abordagem, Jefferson mantém o longa sempre leve e suave, a ponto de alguns até sugerirem uma falta de profundidade na trama. Mas não se iluda. As camadas mais densas de Ficção Americana são como tesouros, apenas verdadeiramente encontrados por aqueles investidos demais, dispostos a encarar o roteiro não como uma alegoria, mas um retrato fiel de uma era tão culturalmente confusa.