Com quantas reviravoltas se faz um Shyamalan?
Desde que se tornou um cineasta estrela, certas coisas são esperadas do cinema de M. Night Shyamalan. Poucos são os diretores que causam tamanho estardalhaço, não apenas no universo da sétima arte e dos cinéfilos, como também da cultura pop em geral, fazendo seu nome ressoar tanto ou mais do que o dos astros na tela. Em pouco tempo Shyamalan se tornou tão popular quanto seus filmes, o que artisticamente é perigoso.
O Sexto Sentido (1999), seu terceiro longa, foi um verdadeiro fenômeno mundial. Trazia de volta o terror e suspense (adulto) para o mainstream comercial, se tornando um sucesso de bilheteria e rendendo para o diretor todo tipo de elogio e comparação: “o novo Hitchcock”, “o novo Spielberg”. O aval que O Sexto Sentido recebeu do grande público, crítica e Academia (com seis indicações ao Oscar, incluindo melhor filme e diretor para Shyamalan) nunca mais se repetiria e as afirmações eram que o diretor havia atingido o pico cedo demais.
A verdade é que Corpo Fechado (2000), Sinais (2002) e A Vila (2004), os filmes que sucederam, pertencem a uma mesma estrutura e a um mesmo modo de pensar, sendo facilmente identificáveis como conexões da mesma mente. É impossível também não se deixar atingir ou influenciar quando se está no olho do furacão e neste momento de sua carreia, era exatamente onde o cineasta se encontrava. De amor extremo, Shyamalan conheceu o outro lado da moeda, um lado amargo, no qual com facilidade pessoas viravam as costas e portas se fechavam.
Seus filmes seguintes, A Dama na Água (2006) e Fim dos Tempos (2008), são reflexos desse sentimento ruim que envolvia o outrora menino de ouro, deixando perceptível o ranço do novo relacionamento que Shyamalan tinha com o mundo. Passada a tempestade, que ainda incluiu o período de diretor de aluguel (O Último Mestre do Ar e Depois da Terra), e o cineasta fez as pazes de maneira tímida com o público, ao lançar A Visita (2015), anunciado como sua volta à boa forma.
Para o feito, Shyamalan precisou voltar às origens, ao que fez seu cinema de autor tão especial, e que parecia perdido em meio a uma batalha de egos contra os críticos, público e, principalmente, os grandes estúdios. Em entrevista recente, em sua passagem pelo Brasil, o diretor revelou as aspirações equivocadas no início de carreira, quando optou pelo melodrama a fim de se tornar um cineasta indie (numa época pré-Sexto Sentido). Nas paredes do quarto, cartazes de obras-primas do terror e suspense chamavam seu nome, atentando para o gênero que verdadeiramente ama. Foi só quando Shyamalan deu ouvidos para a voz interior, que seus filmes se tornaram significativos.
Este é exatamente o caminho que o cineasta volta a trilhar depois de A Visita, um thriller pequeno, produzido no estilo found footage, sem nomes conhecidos impulsionando o filme, mas com sua assinatura – o que inclui o famoso plot twist final – escrita em todo lugar. Shyamalan dava novamente o que as pessoas queriam, tirando de si a paixão pulsante pelo gênero que tanto ama. Fragmentado é o novo passo, um filme maior e, de certa forma, mais ambicioso, que traz o diretor num modo mais próximo ao seu início de carreira, época de seus longas mais celebrados.
A trama, obviamente escrita pelo próprio, abre e logo de cara somos jogados em uma realidade devastadora. Três adolescentes são sequestradas ao saírem da festa de aniversário de uma delas, ainda no estacionamento. O crime ocorre numa pacífica e pequena cidade americana. Aos poucos as vítimas vão conhecendo o seu captor, um sujeito dono de variadas personalidades, algumas perigosas, outras extremamente violentas.
Kevin (James McAvoy), a personalidade original, ao mesmo tempo recebe tratamento da psiquiatra, Dra. Karen Fletcher (Betty Buckley). Novamente, Shyamalan pega uma ideia principal aparentemente simples, e a desenvolve à perfeição. Como de costume o cineasta aposta em seus personagens, dando bastante material para seus atores trabalharem diversos níveis de emoções, arqueando a abrangência de suas atuações.
Neste sentido, Shyamalan dá um presentaço para James McAvoy (X-Men: Apocalypse) e o ator corresponde, elevando o conceito de tour de force. McAvoy se joga de cabeça e dá tudo de si, interpretando personagens bem diferentes, donos de olhares, gestos corporais, padrões de fala e entonação muito distintos, que ele abraça numa performance honesta, chamativa, porém, longe da caricatura. O ator nunca esteve tão bem.
Anya Taylor-Joy (A Bruxa), a refém principal e mais bem trabalhada pelo texto do diretor, dona de um passado igualmente problemático e perturbador, também exibe toda a sua capacidade, precisando servir de ponte e straight man (o personagem passivo) para as viagens alucinantes de seu parceiro de cena. E a menina de 20 anos, dona de uma beleza exótica, segue impressionando. Também vale mencionar a força da veterana Buckley, assim como as novatas Haley Lu Richardson (Quase 18) e Jessica Sula – as outras vítimas – e a pequena e graciosa Izzie Coffey (que interpreta a personagem de Taylor-Joy na infância).
Fragmentado é um belo prato cheio para os adeptos da psicologia, aborda uma temática intrigante de forma séria e embasada, sem esquecer o toque Shyamalan, que envolve num belo embrulho de presente um assunto pronto para ser debatido durante horas. Existem muitas considerações a se fazer sobre o novo longa do mestre (sim, um mestre, não importa quantas mancadas dê), as quais este texto jamais fará jus. Shyamalan, com Fragmentado, garante o clima pesado e assustador (bem mais do que sustos fáceis), imprime sua direção exuberante, e assume novamente as rédeas de sua carreira. Pode-se argumentar ainda que a era dos plot twists (famosas reviravoltas em seus roteiros) tenham ficado em segundo plano, para a construção de algo maior. Se a Marvel tem, porque Shyamalan não pode…