Em 2020, a titânica Lady Gaga parava o mundo com o lançamento de seu sexto álbum de estúdio oficial, ‘Chromatica’, quatro anos depois de sua última incursão (caso excluamos a aclamada trilha sonora de ‘Nasce Uma Estrela’, que lhe rendeu uma estatueta do Oscar). O disco, marcado por infusões do house, do EDM e do synth-pop, promoveu um retorno de Gaga às raízes após ela se aventurar no jazz, no country e no glam-rock, entregando a seus fãs uma produção digna de nos fazer esquecer dos duros anos enfrentados pela pandemia do COVID-19 e que, eventualmente, ajudou a ressurgir, ao lado de nomes como Dua Lipa e Kylie Minogue, um apreço pela nostalgia fonográfica.
Dois anos mais tarde, ela foi propulsionada a fazer uma breve turnê para promover o álbum, recebendo ainda mais aplausos pela profunda temática trazida aos palcos da The Chromatica Ball e por uma estética que apenas ela conseguiria erguer com tanto carisma e presença de palco – guiada por uma arquitetura brutalista e uma representação da arte-performance como mentora constante de suas incursões criativas. Agora, após muito tempo de aguardado, os little monsters foram agraciados com o lançamento de ‘Gaga Chromatica Ball’, longa-metragem que celebra uma das apresentações mais aclamadas da década até então e que reiterou a importância e o impacto da artista no cenário contemporâneo.
Como já vinha mostrando há algum tempo, Gaga ficou responsável por toda a tutela criativa do especial: além de entrar como diretora, ela tomou as rédeas da produção e da montagem a fim de que sua visão fosse levada aos espectadores sem meias-palavras e como um reflexo de sua idiossincrática mente pela qual sempre fomos apaixonados. E, considerando o sucesso de incursões de filmes como ‘Taylor Swift: The Eras Tour’ e ‘Renaissance: A Film By Beyoncé’, era natural que ela acompanhasse essa demanda crescente no circuito do show business. O mais interessante, entretanto, é a longa gestação do projeto (quase dois anos), revelando um cuidado especial que a performer se prestaria a ter – e tudo isso enquanto rodava o aguardado ‘Coringa: Delírio a Dois’, que chega aos cinemas no final de 2024.
A obra nos leva de volta ao dia 10 de setembro de 2022, ao Dodger Stadium, em Los Angeles, onde nada menos que quase 52 mil fãs se reuniram para apreciar uma das artistas mais completas de todos os tempos se entregar de corpo e alma aos fãs – algo que fez desde o início da carreira, lá em 2008. Após uma introdução acompanhada de “Bad Romance”, “Just Dance” e “Poker Face” (uma clássica escolha que ajuda a “esquentar” a atmosfera no estádio), Gaga nos convida a um espetáculo dividido em quatro atos e um epílogo de tirar o fôlego, recheado com hits memoráveis e com canções que caíram no gosto do público com o passar dos anos.
Como mencionado nos parágrafos acima, a artista abraçou as decisões criativas do longa-metragem de modo bastante competente e que continua a lhe dar mais liberdade dentro da carreira – e ela já havia feito isso antes ao encabeçar videoclipes como “Judas”, “G.U.Y.” e “Marry The Night”, demonstrando sua afeição não apenas em dominar os holofotes, mas em promover um testamento a si mesma. O resultado é bastante positivo do começo ao fim, com exceção de alguns equívocos ofuscados pela beleza, pelo poder e pela presença inegáveis de Gaga, bem como de seus claros laços com o público e sua simbiótica sincronia com os músicos e com os dançarinos que fervilham por quase duas horas de puro êxtase musical.
Nota-se que o filme tem uma ideia muito clara em pautar cada canção ou cada ato em uma identidade própria: “Alice” mergulha nas impressões da montagem em glitch, enquanto “911” abraça uma vibrante metadiegese que abraça o eurodisco e o synth-pop da faixa em si; “Babylon” e “Free Woman” apostam em uma homenagem aos ballrooms, envoltos em figurinos brilhantes e um filtro vintage que nos leva aos anos 1980 e 1990 da melhor maneira possível – cada segmento apresentado com uma cinemática e esplendorosa intenção que coloca a audiência no centro do show. É claro que não posso deixar de mencionar os pontuais erros, como cortes frenéticos e alguns problemas de continuidade – mas nada é forte o suficiente para desviar nossa atenção.
O ápice da noite espalha-se em vários momentos, seja na entrega deliciosamente diabólica de “Replay”; na cândida e emocionante sequência em que Gaga senta-se ao piano para performar “Born This Way”, “Shallow”, “Always Remember Us This Way”, “The Edge of Glory” (este sendo o segmento mais tocante e bem arquitetado do projeto, além de vir acompanhado de comentários políticos sobre aborto e sobre liberdade) e “Angel Down” (aproveitando para criticar a política de armas nos Estados Unidos); na divertida rendição de “Stupid Love”; e no irretocável encore, pautado em uma apresentação inebriante de “Hold My Hand”.
‘Gaga Chromatica Ball’ é um lembrete marcante de que Lady Gaga ainda tem muito a nos contar – e que sua etérea e narcótica visão artística merece ser destacada em todos os aspectos. Reunindo-se com a HBO após treze anos depois de sua última colaboração, Gaga faz um glorioso retorno ao cenário do entretenimento com uma paixão irrefreável, incandescente e caótica (no melhor sentido do termo, é óbvio).