AGRIDOCE, POR MUITAS RAZÕES
Não importa o sabor nas nossas bocas, devemos reconhecer que a maior série da atualidade acabou. Mesmo quem não tenha gostado da temporada final certamente irá concordar que Game of Thrones – GoT tem um lugar garantido junto às melhores séries já produzidas. Os problemas da oitava temporada tornam o final agridoce em um sentido peculiar: queríamos algo mais sólido, digno do potencial da série. Porém, mesmo com pontas soltas, seu desfecho guarda alguma coerência com o que vimos antes.
Compreender os acertos e inconsistências deste episódio final exige um olhar sobre toda a construção da narrativa de GoT, pois muitas inconsistências são da temporada e não do episódio.
A FALTA DE SOLIDEZ NO ARCO DA DAENERYS
Na resenha da semana passada, falei que a série tinha elementos que fundamentavam as ações de Daenerys (Emilia Clarke) no quinto episódio. Porém, as duas últimas temporadas exploraram pouco esse processo de queda da personagem. Esta fraqueza da série tirou muito do brilho do desfecho e da metáfora poderosa que representou o fim da Mãe dos Dragões.
Sabendo da falta de solidez das duas últimas temporadas, os roteiristas usaram o diálogo entre Tyrion (Peter Dinklage) e Jon Snow (Kit Harington) para tapar os buracos da oitava e sétima temporadas. O diálogo em si é excelente, mas essa função narrativa que lhe coube o enfraqueceu. Tudo isso é uma grande pena: havia na narrativa elementos para justificar a ação da personagem, faltou apenas o arremate. Mas disso já tratamos bastante no texto da semana passada. Vamos para outro ponto problemático.
JON SNOW: ROMÂNTICO E TARGARYEN
Com ou sem a ascendência de Jon Snow e o seu romance com Daenerys a série teria chegado ao mesmo final. Aposto que teríamos um final bem mais impactante. Se analisarmos com calma, pouca ou nenhuma utilidade tiveram esses dois elementos.
A ascendência Targaryen serviu apenas para ele subir nos dragões. Não teve peso na sucessão do trono. E sua influência na cólera da Daenerys passou quase despercebida. O que sustentou a reação de Dany já havia sido dado. O pior, porém, foi o envolvimento autointitulado amoroso entre os personagens. Zero função narrativa! Teríamos chegado ao mesmo final se os dois tivessem, lá na sétima temporada, feito uma parceria política e pronto! Diga-se, Jon Snow, como um sujeito horado, iria cumprir sua promessa de ajudar na luta contra Cersei, entre outras razões, por Daenerys ter ajudado na luta contra o Rei da Noite.
O romance foi tão mal construído que nem ajudou a dar peso à morte de Daenerys. De forma geral, Jon Snow foi tão subutilizado nesta temporada que em nenhum instante duvidei que ele mataria Dany, porque sem isso, Jon Snow teria sido quase um coadjuvante na temporada.
O DESENCANTO DA FANTASIA
Eis um problema da temporada e não só do último episódio. Os roteiristas optaram por reduzir o nível de magia e fantasia ao longo da temporada, de forma que o final tivesse um tom mais realista, semelhante ao da primeira temporada. A opção é muito coerente com a narrativa. O calcanhar de Aquiles foi não ter liquidado o lado fantasia da série com qualidade. De longe, a prova mais evidente desse descuido foi o arco do Rei da Noite. Seu exército de mortos e sua longa noite passaram como um bloquinho de carnaval de bairro. A própria metáfora do gelo e fogo foi colocado em segundo plano.
O arco de Jon Snow também ficou prejudicado. A forma como a sua ressurreição se deu indicava o confronto com o Rei da Noite e a concretização da profecia do Azor Ahai. Nada! Mas, tudo bem, a série é especialista em subverter expectativas, quem sabe uma desconstrução da jornada do herói. Porém, os acontecimentos finais foram tão mal amarrados que parece forçado comparar a morte da Daenerys como a concretização da lenda do Azor Ahai.
Certamente o elemento de fantasia mais subutilizado nesta temporada e neste final foi Bran (Isaac Hempstead Wright). Pela jornada do personagem, o mais lógico seria ele virar um vegetal além da Muralha. Mas, vamos deixar o desfecho dos personagens para logo mais.
A VOLTA DA POLÍTICA
Por mais que parte do público gostasse mesmo de ver dragões, seres fantásticos, sexo e nudez, GoT sempre teve na política um dos seus principais assuntos. E se o plot da fantasia não teve um desfecho satisfatório, o jogo político do último episódio elevou o nível da temporada. E, não, não estou falando apenas do acordão final para dar o trono ao Bran. A questão política mais forte do episódio foi como o poder absoluto corrompe e gera tirania.
Ainda que pudesse ter sido mais bem trabalhado, a postura autoritária de Daenerys transmitiu uma mensagem poderosa que a série construiu com esmero ao longo das oito temporadas: o poder pode corromper ou colocar em desgraça até os melhores. O seu discurso ao diminuto exército foi a tradução de como ditadores vestem seus desejos mais sórdidos das mais belas justificativas. Para todo tirano, um cadáver sempre parecerá a semente de um futuro glorioso.
Mesmo a construção desse desfecho nas últimas temporadas não sendo tão sólida, a ideia de que o Trono de Ferro representa toda a desgraça que o poder provoca é poderosa e condizente com a série. Desta forma, Drogon derrete o trono porque sabe que aquilo simboliza a corrupção que matou a sua mãe.
Muitas outras interpretações podem ser retiradas dessa imagem. Fico com esta! Diante da dor da perda da sua mãe, Dorgon destrói o símbolo máximo do poder que é capaz de corromper absolutamente. Um símbolo forjado por um dragão e destruído por outro. De certa forma, ele sabia que a questão não era Jon Snow. Este apenas era uma engrenagem na roda. Apenas destruindo o próprio poder seriam possível acabar com o mal que dizimou sua mãe.
Porém, ao contrário do anel em O Senhor dos Anéis, o trono não é o poder, é apenas o símbolo. O poder e seus vícios permanecem, mesmo que se invente uma nova política. E o que veio depois foi exatamente isso.
WESTEROS, DA MONARQUIA À OLIGARQUIA
O que veio após a destruição do Trono de Ferro foi a tradução de como as relações de poder mudam pouco, mesmo diante de uma grande tragédia. Por mais tedioso que possa parecer um bando de senhores discutindo quem irá governar a parada toda depois do massacre em Porto Real, essa é uma tradução bem fiel de como a política real resolve um pós-guerra.
Mesmo com algumas inconsistências na construção desse (anti)clímax, a série conseguiu traduzir que em negociações do tipo não há glamour. O que assistimos ali foi a reorganização política de um país. Westeros abandonou a monarquia e virou uma oligarquia. Certamente uma evolução, mas nada tão progressista quanto o pedido de diretas já de Sam. Sim, a roda foi destruída, mas a que foi posta no lugar aproveitou as engrenagens que sobraram.
Não me incomoda nesse aspecto a forma sem glamour que tudo se deu. O que enfraquece a sequência são novamente inconsistências de roteiro. A decisão de dar um salto temporal é pratica e já fora utilizada pela série. Contudo, as lacunas não foram bem trabalhadas. Dá a entender que os senhores de Westeros fizeram um cerco a Porto Real. Por que as Tropas de Daenerys conseguiram se manter tão poderosas a ponto de manter Jon Snow preso e barganhar sua punição? Por que os aliados de Daenerys, como Yara Greyjoy, aceitaram tão bem a derrota de Daenerys? Por que os senhores de Westeros aceitaram sem nenhuma oposição a independência do Norte e o reinado de Bran?
Muitas lacunas podem ser respondidas com certa criatividade dos fãs. Não, não quero tudo mastigado da série. GoT nunca foi assim e as melhores narrativas deixam espaços para serem completadas pelo público. Porém, antes, a construção permitia que deduzíssemos e tapássemos os buracos. Neste final, dependíamos apenas da nossa criatividade.
HISTÓRIA, ESTÓRIAS…
Um dos pontos altos do episódio foi Tyrion. Mesmo sendo incoerente um prisioneiro falando tanto em uma reunião decisiva – pensava-se que com o salto temporal ele já estaria solto – sua fala fortaleceu um elemento importante de GoT, a força das histórias. O discurso de Tyrion ecoou sua conversa com Varys no episódio da Batalha de Água Negra, sobre quem o mercenário deveria seguir. A resposta era: em quem ele acreditar. E em quem um povo acredita mais do que tudo: na sua história. Visto de forma otimista, um povo se mantém unido por tradições e história comuns. Sendo mais cínico, o povo se mantém unido a depender da narrativa que lhes contarem…
O PROTAGONISMO STARK
Talvez os livros não tenham protagonistas. Mas, a série deu o protagonismo aos Starks. Não quero aqui entrar na conversa do gostei ou não gostei, mas discutir se o final dos quatro Starks foi coerente.
Os dois finais mais redondos são os de Arya (Maisie Williams) e Sansa (Sophie Turner). Plenamente coerente com o desenvolvimento das personagens. Arya desde sua primeira aparição era indomável. Torná-la uma desbravadora dos mares é uma conclusão lógica. Sansa foi uma das poucas coisas bem trabalhadas nesta oitava temporada; foi nela que a personagem ganhou o direito de ser a Rainha do Norte.
O final de Bran pareceu o mais forçado. Seu arco apontava para um final fantasioso, como ir para além da muralha assumir de vez o posto de Corvo de Três Olhos. Exceto pelo fim da ameaça do Rei da Noite, nada indicava em sua jornada este final. Há um “q” de poético em sua coroação. Porém, toda a dimensão fantástica do personagem foi esquecida. Enfim, certamente será um dos muitos aspectos deste encerramento que gerará debate entre os fãs nos próximos anos.
Por fim, Jon Snow! Ele começou como bastardo, fora do contexto da guerra pelo trono. Sua trajetória em muito emulou a jornada do herói, que acabou sendo (mal) desconstruído pela série. Deslocado do desfecho do plot do Rei da Noite, restou-lhe a função de libertar Westeros da ameaça Daenerys. O arranjo político envolvendo a suposta pena de exílio na Patrulha da Noite foi visto por alguns como incoerência. Podemos pensar nisso como uma tentativa dos nobres de Westeros enganar os Imaculados, afinal, a Patrulha já havia sido extinta e o próprio Norte independente não iria manter seu filho mais nobre em cárcere.
Mesmo tendo uma reta final problemática, Jon Snow terminar como Rei do Povo Livre foi coerente com a sua jornada. Ele não pertencia mais a Westeros. Ele estava destinado a viver no verdadeiro norte. Eu teria preferido que ele rumasse ao Norte como Azor Ahai após derrotar o Rei da Noite, como uma espécie de eterno protetor da luz. Mas a série nos reservou outra coisa.
ACABOU
Poderia ficar aqui falando de outros tantos erros e acertos deste episódio ou da temporada. Mas isto seria desnecessário. Game of Thrones é muito maior do que os erros do seu final. É uma série que conseguiu ser um evento social, mobilizando pessoas ao redor do mundo diante da televisão. Possivelmente, foi a última narrativa televisiva a conseguir isto. Sim, ainda virão muitas séries e vamos continuar discutindo, criando teorias e nos emocionando. Porém, esta sensação de comunhão, de estarmos todos sentados na mesma sala de estar (virtual), a conversa no trabalho no dia seguinte, isto não deve se repetir. E nem mesmo os erros desta última temporada apagará!
E aí, o que achou deste episódio? E da temporada? E de Game of Thrones?!
Durante toda a temporada, ao final de cada episódio, eu, Bruno Fai e Rafa Gomes estaremos conversando ao vivo sobre o a série. O bate papo do sexto episódio vocês podem conferir aqui. Na quarta, realizaremos outra live para discutir a série como um todo. Não deixem de comentar, compartilhar a resenha e curtir as nossas redes sociais:
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