É tendência, está nos jeans surrados, nas jaquetas oversized, na modelagem militar, nos sneakers espalhafatosos, nos óculos bem ajustados e pontiagudos, nas franjinhas ainda mais curtas. Os anos 80 nunca estiveram tão atuais e embalando na barca de remakes da década e dos inúmeros revivals provenientes de seu período subsequente, o entretenimento se apropria desse amor inveterado pelo vintage oitentista, transformando-o em produções originais que exalam uma riqueza de referências e aquela estética que todos amam recordar. Mas encontrar autenticidade no antigo não é tão simples como parece e esse novo refrigério partindo do velho é um dos aspectos mais soberbos da segunda temporada de Glow, da Netflix.
Em seu primeiro ciclo, a produção gerou um fascínio por resgatar uma história real empoeirada, que passou anos a fio escondida das décadas sucessoras. Ao se livrar da poeira e reeditar o clássico GLOW – Gorgeous Ladies of Wrestling, a Netflix projetou seus holofotes para um grupo de underdogs, reduzidas a estereótipos falidos, que – sem muitas opções em mãos – se submetem ao aparente ridículo, para trazer o simplesmente fantástico para as audiências. Dentro e fora da narrativa. E em seu retorno, envolto pelo carisma hipnotizante de um grupo de protagonistas excepcionais – sob o comando de Alison Brie – e a simpatia da crítica especializada que não mede elogios, a produção de Liz Flahive e Carly Mensch se mostra ainda mais atual, em um ciclo que une referências apaixonantes ao belo desenvolvimento de seus personagens, uma trilha sonora nostálgica (vide Madonna) e uma profundidade em temas mundiais antigos, mas que nunca foram tão contemporâneos como agora.
Em uma longa epifania, voltamos à tecnologia dos VHS, com episódios que exploram a estética da televisão oitentista, os maneirismos culturais da juventude da época, em meio a cortes de cabelo que representam um quase manifesto artístico, com o auge dos permanentes, o uso indiscriminado dos sprays – conhecidos como laquês – e maquiagens que exploram tons neons, em rosas excessivamente rosas, verdes fluorescentes e laranja – todas elas cores que também estampavam os figurinos, sempre marcados por polainas. Com um design de produção metódico, a década ganha uma abordagem extremamente genuína, fazendo com que Glow seja uma produção nascida nos anos 80. Entre takes feitos em alta definição e fragmentos filmados de maneira analógica (pelo menos intencionalmente), o segundo ciclo se mantém fiel ao que amamos, investindo no arco de seus personagens de forma progressiva, nos fazendo apaixonar por cada qual de forma diferente.
Em uma narrativa que pega o viés “desajustado” do público feminino e o transforma em protagonista, seja de seus dramas, medos, vitórias ou reviravoltas, Glow se destaca primeiramente em Alison Brie, cujo rosto – até então sempre associado aos anos 60 de Mad Men – se consolida como as feições oitentistas da época. Com o visual mais simples, ela é uma das caracterizações milimétricas da série, que se apresenta com um vasto leque de personalidades tão avessas e distintas, que se completam brilhantemente em diálogos bem construídos, relações interpessoais diversas e uma dinâmica em tela absolutamente natural de cada atriz.
E à medida que as subtramas avançam, Marc Maron rouba a cena, como aquela figura masculina que sai da sombra do machismo da primeira temporada e encara o protagonismo de alguém que, embora seja antigo, está disposto a mudar. Por estar cercado por mulheres, os fragmentos misóginos se desfazem, mostrando um personagem ainda mais rico e cativante, com muitas facetas que acabam sendo abordadas com cuidado e sabedoria por um roteiro bem alinhado. Seguindo o mesmo viés, as demais lutadoras ganham seu tempo de tela ideal, se desabrochando diante da audiência com leveza e envolvimento, gerando uma relação de proximidade e identificação com o público.
Com uma direção que se espelha no modelo dos anos 80, Glow brinca com a estética da produção da época, construindo episódios de uma riqueza artística sem precedentes no universo de séries originais da Netflix. Com o capítulo oito como sendo um banquete de como era a televisão no período, nos deleitamos em um frenesi de programas originais que – evidentemente – seriam exibidos como uma grade de programação real. E conforme brinca com seus próprios estereótipos em caricaturas que emanam referências e autenticidade – simultaneamente, a produção ainda se mostra como pontual e precisa, transformando os casos envolvendo Harvey Weinstein em uma problemática que todos sabíamos que existia. O inconveniente teste do sofá reconstrói as denúncias feitas por mais de 100 mulheres do ramo, nos trazendo uma terrível dramatização de um consenso geral sobre o que é o abuso dentro e fora de Hollywood.
E por explorar o delicado assunto sob três óticas distintas, os acalorados debates em torno do que é ou não abuso e do comportamento da vítima mediante a agressão ganham um abordagem responsável e determinante, fazendo com que a Netflix se destaque ainda mais, com maturidade e humor equilibrados com perfeição, sem prejudicar a validade de ambos os conceitos trazidos para a tela. Com uma trilha sonora regada a hinos nostálgicos e revigorantes, como ‘Crazy For You’, da Madonna, ‘It’s Like That’, do Run D.M.C. e ‘The Warrior’, de Patty Smyth, Glow se mantém mais ávida e essencial como nunca, mostrando que muito mais que lutas hipnotizantes, essas desajustadas mulheres do passado têm algo espetacular para acrescentar ao nosso presente.
Crítica | GLOW – Netflix ressuscita os anos 80 em mais uma série “da hora”