Guimarães Rosa escreveu importantíssimos livros que são considerados clássicos da literatura brasileira, como ‘Grande Sertão: Veredas’ e ‘Sagarana’. E uma de suas principais características – segundo os leitores e a crítica – é seu texto rebuscado, de altíssima qualidade gramatical, que deixava os professores de literatura em êxtase, e os alunos, em pânico. Tal dificuldade se estendeu quando foram adaptar suas obras para outros idiomas e, posteriormente, quando foram adaptá-las para outras linguagens, como o cinema. E apesar da enorme potência de sua obra, Guimarães continuava distante do cotidiano do brasileiro comum. Mas isto está prestes a mudar com a estreia nesse feriadão do filme ‘Grande Sertão’, a mais nova – e definitiva – adaptação do romance homônimo.
Num território distópico atemporal, todo recortado por guetos, favelas e facções, o professor Riobaldo (Caio Blat) tenta sobreviver no Sertão, local dominado pelo bando de Joca Ramiro (Rodrigo Lombardi, o eterno Raj da novela ‘Caminhos das Índias’). Quando uma aluna sua é baleada na porta a escola, Riobaldo conhece Otacília (Mariana Nunes, de ‘Alemão’), mãe da menina, e reencontra Diadorim (Luisa Arraes, de ‘Transe’), seu antigo amigo de infância que lhe encorajara a não ter medo da vida. Dessa encruzilhada, Riobaldo repensará sua interpretação de mundo e os desdobramentos no Sertão. Porém, quando uma guerra explode encabeçada por Hermógenes (Eduardo Sterblitch, de ‘Dois é Demais em Orlando’) e revidada pelo comandante do exército, Zé Bebelo (Luís Miranda, de ‘Ó Paí Ó 2’), Riobaldo terá que colocar à tona a coragem que não sabe existir dentro de si, ao mesmo tempo em que tentará entender os motivos de seu peito bater de forma diferente por Diadorim.
‘Grande Sertão’ tem muitos méritos por conseguir coisas “inconseguíveis”. A primeira delas, claro, é conseguir adaptar uma obra extensa (cerca de 740 páginas) para um formato fílmico, e com menos de duas horas! O longa também consegue traduzir a guerra do sertanejo, dos cangaceiros versus os jagunços, os coronéis, as milícias do imaginário comum do interior do país para uma linguagem contemporânea, urbana, traçando um paralelo com a violência que ocorre hoje nas capitais metropolitanas do país. Nesse sentido, não há diferença dos anos 1950 para o hoje, ou entre o sertão e o urbano, ou entre o cangaço e as periferias comandadas por poderes paralelos.
A caracterização dos personagens impressiona, tanto no figurino quanto na maquiagem/cabelo – setores comandados por Cao Albuquerque, Diana Leste e Rosemary Paiva. Esses departamentos conseguiram, inclusive, “enfeiar” Rodrigo Lombardi, vejam só! Brincadeiras à parte, além das indumentárias steampunk/industrial, a caracterização de Eduardo Sterblitch é chocante, um misto de Puck de ‘Sonho de Uma Noite de Verão’ com Gollum de ‘O Senhor dos Anéis’ e um vozeirão sintetizado meio Mr Catra. De longe é seu melhor papel e é também a melhor interpretação de todas de Hermógenes. Fosse vivo, até Guimarães ficaria bolado de vê-lo em cena.
Caio Blat volta a encarnar Riobaldo (depois da peça que saiu em turnê pelos CCBBs em 2017, com parte desse mesmo elenco, e depois de gravar esta peça encenada no filme ‘O Diabo na Rua no Meio do Redemunho’, que passou ano passado no Festival do Rio) e traz seu melhor para esta versão. São 7 anos co-vivendo com esse personagem e a sensação é que, com o tempo, Caio só o melhorou, só o entendeu mais em sua complexidade. Também Luisa Arraes entrega uma surpreendente versão de Diadorim (originalmente na peça feita por Luiza Lemmertz), demonstrando todo o seu potencial não só por anteriormente decorar todo o texto de Hermógenes, como, agora, entregar um Diadorim com sangue nos olhos. Aqui Luisa mostra que é uma atriz enorme, corajosa e que enfrenta tudo de frente, emprestando sua força feminil para trazer um Diadorim valente, líder, inspirador.
E tudo isso ganha uma roupagem de tirar o fôlego com a belíssima – belíssima mesmo – fotografia do diretor Gustavo Hadba (olho nele! que seus trabalhos são avassaladores!). A comunhão que o diretor encontra entre a iluminação perfeita, o posicionamento de câmera e ângulos absurdos (que encontra o melhor de seu elenco), somado a uma montagem agilíssima que imprime um ritmo frenético na produção, faz a gente ter vontade de chorar diante de tanta beleza. Ou falar um palavrão bem alto, tamanha a dificuldade para controlar as emoções.
Sob a assinatura do diretor Guel Arraes (que volta ainda esse ano com ‘O Auto da Compadecida 2’), esse ‘Grande Sertão’ é uma obra-prima irretocável. A ferramenta que os professores precisavam para animar os estudantes a lerem Guimarães Rosa – que teria aprovado o resultado dessa adaptação. ‘Grande Sertão’ é cinema-arte melhor que muito embutido hollywoodiano, e demonstra a atemporalidade e a qualidade da literatura (e do cinema) brasileira.