Era de se esperar. Dificilmente o astro Donald Glover erra a mão em sua produção criativa. Dono de um dom hipnotizante e admirável, o artista é do tipo que transita bem no entretenimento, com uma leveza e tranquilidade sem precedentes. E gente como ele, produzindo como ele, é um tanto raro. De tempos em tempos vemos um talento dessa magnitude surgir, do tipo que quebra paradigmas, cruza fronteiras inóspitas e consegue se fazer ouvir por sua autenticidade e pontualidade social. E viver em uma época onde a voz de Glover ecoa, é um privilégio. Mais ainda é poder ser surpreendido por Guava Island, o inesperado novo filme do astro, estrelado também por Rihanna. Você nem sabia, mas esse filme era tudo (e mais um pouco) que precisávamos.
Uma ilha paradisíaca, habitada por um povo com espírito festeiro e um sorriso largo no rosto. Entre ruínas de casas mal acabadas, feitas com matéria-prima de baixa qualidade, um pequeno povoado encontra na música o alívio para uma vida sofrida. Um pedacinho da África habita ali. E a grande falta de qualidade das favelas cariocas inspira as ruas estreitas mal acabadas de casas empilhadas e apinhadas de cacarecos. A pobreza é a definição de uma terra de origem rica, dona de uma seda azul inigualável. Essa, que marca as peças de roupa da população. Guava Island traz a essência da cultura e da arte expressa em uma linguagem visual incrível e retrata uma história sobre o peso de um capitalismo às avessas, que oprime seu povo em prol da produção em larga escala e transforma em miséria o que seria a maior dádiva de uma nação.
Dirigido por Hiro Murai, o pequeno filme de apenas 55 minutos (mais curto que alguns episódios de Game of Thrones e que todos de Sherlock), é belíssimo. Iniciando ao som da bela e doce voz de Rihanna, nos deparamos com uma animação cativante, cheia de cores e bem ideológica. Como alguém que narra um conto, ela fala sobre o aprisionamento desse povoado, submetido a uma escravidão moderna, sob a liderança de RED. Sem sabermos, ela conta essa história para o futuro dessa apaixonante nação. E a narrativa conduzida por Murai, jovem e bem conhecido pelo seu espetacular trabalho com a série Atlanta, poderia até ser simples, mas é arrebatadora ao fazer da estética seu norte. Com um design de produção lindo, o longa sabe usar os tons de azul para se construir e tem um fotografia impressionante, que mescla a perfeição de figurinos únicos com uma ilha que transita entre a beleza do mar azul e a feiura de ruas imundas e casas caindo aos pedaços.
Colocando Glover para assumir seu alter ego musical, Childish Gambino, Murai explora os extremos do ator, levando-o da atuação à dança e o canto. Apresentando tudo que ele tem de melhor à nossa disposição pelos próximos 55 minutos, parece até que estamos assistindo um documentário. Negro, que sempre soube se posicionar diante de suas raízes e conhecedor do peso que ela tem diante de uma sociedade que ainda digladia com práticas racistas e segregacionistas, ele vive um artista ideológico, que ao invés de deixar sua terra em busca de um futuro melhor, acredita que ainda é possível mudar as coisas. Ainda que ele mesmo seja o preço para isso.
Com um roteiro escrito por Stephen Glover, irmão do ator, Guava Island é um manifesto artístico colorido. Aborda a segregação, a opressão e o peso de ser negro diante de uma sociedade que o olha como alguém menor, inferior. Fazendo uso de linguagens não verbais e verbais, a trama tem a mesma riqueza e pontualidade contemporânea e social de Atlanta, série que rendeu ao escritor dois prêmios do Sindicato de Roteiristas (Writers Guild of America Awards). E com seu irmão também produzindo, sob a direção de Murai, temos ali um trio de sucesso de público e crítica, que trabalha em uma sintonia admirável.
E Rihanna se torna a cereja do bolo. Atuando cada vez melhor, ela deixa sua voz de fora da produção, mas mantém uma química musical com Glover tão natural, que nos faz ansiar por ouvir o seu canto. Mas, honestamente, isso não faz falta. Cantando até mesmo sobre serviço de carga em uma pegada bossa nova, Childish Gambino faz a audiência delirar, querendo esse hit no ouvido. E trazendo algumas de suas canções mais amadas, ele é capaz de contextualizar este drama com canções como This is America e Feels Like Summer, nos embalando em uma viagem cultural incrível.
Realista e ao mesmo tempo utópico, Guava Island é um dos melhores filmes de 2019. Ok, ainda estamos apenas no quarto mês do ano. Mas com um roteiro extremamente bem escrito, capaz de condensar uma narrativa genuína em apenas 55 minutos de vídeo, fica difícil achar outra produção capaz de construir uma história tão impecável, que produz uma reflexão profunda sobre o poder da mudança através da arte e nos faz identificar com três personagens (não nos esqueçamos de Letitia Wright), em questão de segundos. Donald Glover não cansa de nos surpreender mesmo.