Quando Lady Gaga solta as primeiras notas de sua versão para a clássica canção “Good Morning” (que foi eternizada nos longas-metragens ‘Babes in Arms’ e ‘Cantando na Chuva’), sabemos que a titânica cantora, compositora e produtora está em sua zona de conforto. E seu mais novo álbum, ‘Harlequin’, que foi anunciado de surpresa como acompanhante do vindouro ‘Coringa: Delírio a Dois’, é exatamente o que esperaríamos de uma artista do calibre de Gaga: um compilado de releituras de icônicas canções, pincelado com uma identidade única e que a coloca em um patamar de extrema felicidade à medida que nos guia por uma aventura sinestésica, dançante e atemporal – reiterando seu importante status na cultura pop.
O disco, que conta com nada menos que treze faixas, é um encontro explosivo entre passado e presente, mesmo deslizando em pontuais momentos. Logo de início, podemos sentir a veia teatral e camp da performer permeando com precisão cada uma das notas, entregando-se de corpo e alma conforme busca elementos de Judy Garland, Mickey Rooney, Betty Noyes e Gene Kelly para nos transportar a uma época saudosista e, de certa maneira, que estende seu legado à contemporaneidade. Navegando pelo jazz e pelo pop como ninguém (e aproveitando seu elogiado trabalho ao lado de Tony Bennett com ‘Cheek to Cheek’ e ‘Love for Sale’), ela perpassa pela vibrante “Get Happy” antes de render-se ao antêmico gospel de “Oh, When the Saints” – sem sombra de dúvida uma das melhores entradas desse pot-pourri fonográfico.
Ao passo que as canções vão se desenrolando, percebemos uma fúria artística por trás dos olhos de Gaga – uma persona que pegou emprestada tanto de suas primeiras eras no pop quanto a personagem que interpreta no vindouro ‘Coringa: Delírio a Dois’, mergulhando de cabeça em uma espécie de psicose criativa que exala Lee (uma versão da icônica Arlequina que vive ao lado de Joaquin Phoenix como o protagonista titular). É a partir desse âmbito que a personalidade de algumas canções nos guiam para um caminho apenas para um giro de 180º em outra direção: “World on a String” pega a ambientação popularizada por Harold Arlen e Cab Calloway nos anos 1930 e aposta na retumbância reverberante de uma bateria quase eletrônica, abrindo espaço para um bem-vindo conceitualismo que, aqui e ali, causa estranhamento; “If My Friends Could See Me Now”, por sua vez, inicia-se com uma guitarra isolada antes de explodir num blues apaixonante e feroz do começo ao fim, deixando que os trompetes e o baixo tenham seu momento de brilhar em contraste com o fraseamento irretocável da artista.
É notável como ‘Harlequin’ é atmosférico. Assim como o primeiro longa-metragem, a narrativa é ambientada nos anos 1980 – mas de uma forma propositalmente anacrônica. Se Lee e Arthur Fleck vivem em seu mundo, fugindo de uma realidade dilacerante, Gaga faria o mesmo com o álbum. Por essa razão, ela nos convida a uma jornada que perpassa vários gêneros e épocas: temos sua propensão estilística a musicais com “That’s Entertainment”, uma das incursões do filme ‘The Band Wagon’; a menção direta a Charles Chaplin com uma releitura belíssima de “Smile”, do filme ‘Tempos Modernos’; e, remando contra nossas expectativas, a incursão arena-rock de “The Joker” em uma entrega simplesmente inimaginável e performática da cantora, honrando com prestígio o clássico musical ‘The Roar of the Greasepaint – The Smell of the Crowd’.
Gaga não nos deixaria sem um gostinho de produções inéditas – e toma as rédeas de seus vieses artísticos com duas faixas. A primeira delas, “Folie à Deux”, pega o nome do filme e transforma uma histeria psicótica em uma história de amor pautada na desconstrução de icônicas progressões orquestrais de outrora, com destaque ao início do refrão, “nas nossas mentes, estaríamos muito bem” (que captura a essência de Arthur e Lee antecedendo a melancolia fabulesca do piano); “Happy Mistake”, a segunda track inédita, aposta no sensorialismo dos acordes do violão, atrelados a um eco esvoaçante que ganha mais força em um potente refrão melodramático. Aqui, Gaga mostra uma vulnerabilidade vocal que não nos entregava desde ‘Nasce Uma Estrela’, inclusive nos fries de que se apropria na segunda metade da canção e que estende a uma emocionante bridge.
O disco pode não agradar aos fãs mais inveterados de Gaga, por desejarem que ela tivesse voltado por completo ao mundo pop – algo que fará em breve, com seu antecipado sétimo álbum de estúdio, agendado para fevereiro do ano que vem (e com o lançamento do lead single no próximo mês). Porém, gostos pessoais à parte, essa mixórdia estilística está à par com o que a performer faz desde seus primeiros passos na indústria fonográfica, unindo uma gama de covers de jazz e blues irretocáveis e inebriantes à medida que transita entre esporádicas mudanças. E, finalizando a obra com a espetacular “That’s Life”, entendemos o motivo dela ser uma das presenças mais versáteis da história da música.
‘Harlequin’ é uma ótima extensão a ‘Coringa 2’ e uma sólida adição à discografia de Gaga, por mais que não seja perfeita. O que mais nos intriga acerca da produção é o comprometimento assustador de Gaga em não apenas colocar sua persona imbuída às tracks, mas garantir que a psique de Lee esteja presente para preparar o público a uma aventura como nenhuma outra.
Nota por faixa:
1. Good Morning – 4,5/5
2. Get Happy – 4/5
3. Oh, When the Saints – 5/5
4. World on a String – 3,5/5
5. If My Friends Could See Me Now – 4/5
6. That’s Entertainment – 4,5/5
7. Smile – 4/5
8. The Joker – 5/5
9. Folie à Deux – 4/5
10. Gonna Build a Mountain – 3,5/5
11. Close to You – 3,5/5
12. Happy Mistake – 4,5/5
13. That’s Life – 5/5