Um clássico ainda muito atual
Baseada na quintessencial obra literária de Ray Bradbury, lançada em 1953, a nova interpretação de Fahrenheit 451 fez seu debute em terras francesas no prestigiado Festival de Cannes deste ano. Depois disso o longa seguiu para sua plataforma-mãe, já que se trata de uma produção original HBO. E que produção! O canal a cabo demonstra o que é uma obra cinematográfica – mesmo uma lançada para a telinha. O escopo aqui é grandioso, assim como vários dos quesitos técnicos.
Sem querer desmerecer plataformas rivais, como a Netflix, mas em matéria de produções relevantes, que sabem misturar forma com conteúdo, a HBO domina o mercado. O conto original de Bradbury fazia clara analogia e crítica ao fascismo (e ao nazismo), prevendo inclusive muito do mundo moderno. Logo em seguida, na próxima década, o icônico François Truffaut deu sua versão de uma roupagem audiovisual ao texto – repetindo muito dos protestos – é curioso notar, por exemplo, a saudação dos “bombeiros” (muito similar ao heil Hitler), ou o fato de seus lança-chamas serem na verdade mangueiras, antes usadas para combater o fogo e agora para ateá-lo.
Na trama, passada num futuro utópico, a sociedade entrou em colapso devido a constantes conflitos civis. Como forma de assentamento, praticamente toda leitura é proibida. Profissões que consistem em escrita – vide jornalistas, poetas, filósofos e escritores – foram banidas. Todos os livros escritos do passado, assim como filmes e qualquer veículo do pensamento livre, são constantemente queimados por serem estritamente proibidos. A cargo desta missão estão os tais “bombeiros”, a força policial que funciona como juiz, júri e executor.
À primeira vista, Fahrenheit 451 parece fácil de ler, e apontar o preto e branco desta equação. O fascismo é ruim, e tais agentes cumpridores da lei são as figuras a serem combatidas. Nosso protagonista, no entanto, é justamente um membro de tal equipe. Guy Montag, papel do sempre ótimo Michael B. Jordan (recém-saído dos sucessos de Pantera Negra e Creed – Nascido para Lutar), é um sujeito cumpridor das regras, que pensa estar fazendo o que é certo sem questionar muito. Ideia de muitas instituições militares: seguir as ordens sem perguntas.
Quando o protagonista “desperta” para o outro lado, e começa a perceber que existe mais do que lhe é dito, do que lhe é mostrado, e a pensar por si próprio, chega a grande reviravolta do longa. A coisa toma uma proporção ainda maior se levarmos em conta que Montag é um oficial promissor na instituição governamental, sendo o braço direito de seu superior e amigo, Capitão Beatty, personagem do monstro Michael Shannon. A quebra de confiança é uma das questões trabalhadas na obra igualmente.
Como toda mudança necessita de uma causa, ela chega nas formas da exótica Clarisse, papel da algeriana Sofia Boutella – atriz que tem se destacado bastante e em breve despontará para o estrelato. Ela sem dúvidas possui o talento e o carisma. A mudança ideológica do personagem não é despropositada, e ela ocorre de uma transição na qual percebemos o desenvolvimento. Os relacionamentos são honestos o suficiente e ocorrem de forma deliberada. Desde o primeiro contato entre Montag e Clarisse, o protagonista se sente intrigado o bastante para saber mais sobre esta informante misteriosa.
Ao mesmo tempo, o longa de Ramin Bahrani (do ótimo 99 Casas) cria personagens ambíguos e humanos, mesmo quando achamos que só existe um lado para eles. Adaptado pelo próprio diretor, em parceria com Amir Naderi, o texto entrega nuances inesperadas a estes “robóticos” homens da lei. A interação entre Montag e seu Capitão igualmente traz os personagens a um nível bem real.
E aqui voltamos ao citado nos parágrafos acima sobre como a nova versão deste clássico pinta seu tema de forma muito acinzentada, talvez mais do que anteriormente. Na melhor cena do filme, o Capitão revela o motivo real por trás de seu serviço. A queima dos livros veio não de ditadores vilanescos, mas sim de nichos representativos da sociedade. Por exemplo, os negros se ofendem com determinadas obras por considerarem seu teor racista, assim estas são banidas. As feministas não simpatizam com autores como Henry Miller e Hemingway, e protestam contra eles – seu destino igualmente é a fogueira.
Fahreinheit 451 quase teve Mel Gibson como seu diretor, e neste “universo alternativo” Tom Cruise seria o protagonista. Outro astro considerado para o papel principal foi Brad Pitt. Não importa, Jordan dá conta do recado, e é bem servido por coadjuvantes como Boutella e Shannon. Os pontos altos, no entanto, são a parte técnica (com uma fotografia lindíssima, efeitos e uma direção de arte impecável), e óbvio, o tema pra lá de fervoroso. As luzes de neon iluminando as arquiteturas futurísticas e personagens, remetem aos recentes Atômica e Blade Runner 2049. Sim, é daquele tipo hipnótico.
Como ocorreu com O Nascimento de uma Nação (2016), o tema subvertido abre espaço para um novo diálogo, para um novo olhar, acrescentando um discurso muito tangível atualmente. O dos falsos valores de falsos messias sociais, que se apropriam de causas e se protegem no ativismo, com o simples objetivo de deter o poder e ditar regras à sua maneira. Fora isso, mostra o quão perigoso para a história pode ser a apropriação de novos valores, e o choque cultural provido por qualquer tipo de censura, mesmo aquelas que idealizam fazer o bem, combatendo ideias nocivas. É uma tênue linha para o extremismo. Aqui, o fascismo não é exatamente o que esperamos dele, e Fahrenheit 451, mesmo com certo grau formulaico em sua estrutura, vai muito além do que esperamos da refilmagem de um clássico produzido para a TV.