Um jovem gay desenvolve uma profunda amizade com o astro do rugby de seu time e começa a nutrir de um amor platônico e da esperança de que ele possa ter sentimento mútuo – mesmo que ele se entenda como heterossexual. Essa é a premissa de ‘Heartstopper’, a nova série LGBTQIA+ da Netflix, baseada na graphic novel homônima assinada por Alice Osman. É claro que, considerando a essência das dramédias adolescentes, o enredo passa longe de ser original – mas ganha uma roupagem fora das normas convencionais ao transferir a atmosfera para uma densa e bem-vinda construção queer. Afinal, se nos anos 1990 as narrativas cinematográficas se restringiam a relacionamentos heterossexuais de duas pessoas pertencentes a mundos diferentes (‘10 Coisas que eu Odeio em Você’, por exemplo), agora o cenário do entretenimento se volta para trazer, ainda que a passos curtos, um pouco de representatividade às telas.
A HQ foi lançada em 2017 e, considerando o longo tempo que obras literárias demoram para ser adaptadas ao audiovisual, até que os fãs dos quadrinhos morreram de ansiedade esperando para uma releitura. Em certo aspecto, ficamos com um pé atrás quando conhecemos o catálogo oscilante da Netflix, que tem capacidade de entregar projetos ótimos e ruins ao mesmo tempo. Felizmente, a série emerge como uma das melhores do ano, não por promover uma revolução estética ou uma desconstrução das fórmulas, mas por utilizá-las em prol de um ideal bem delineado, gestando um sólido coming-of-age que nos envolve com força gigantesca e nos gruda a cada um dos breves oito episódios. Desde a singela atuação do elenco protagonista à competente direção de Euros Lyn, a temporada de estreia de ‘Heartstopper’ é uma carta de amor às rom-coms adolescentes e ao fato de toda forma de amor ser válida.
O capítulo inicial apresenta Charlie Spring (Joe Locke), um garoto do colegial cuja sexualidade foi revelada a uma escola só para meninos contra sua vontade, forçando-o a sair do armário e a sofrer com assédios constantes por parte dos valentões da escola. Apesar dos obstáculos, Charlie é acompanhado de perto por seus melhores amigos, Tao (William Gao), um jovem superprotetor que não quer que ninguém se machuque; o introvertido Isaac (Tobie Donovan), que sempre está acompanhado de um livro; e Elle (Yasmin Finney), uma garota trans que se mudou para um colégio só para meninas depois de se revelar e passar pelo processo de transição. Charlie vê seu monótono cotidiano sofrer uma reviravolta quando ele passa a sentar ao lado de Nick Nelson (Kit Connor), astro do rugby que, para a surpresa do protagonista, o acolhe como confidente.
Para aqueles que fazem parte da comunidade LGBTQIA+, apaixonar-se por alguém que não corresponde à mesma orientação sexual é uma sentença de dor e sofrimento, principalmente pelo fato de sermos obrigados a superar algo que é incontrolável. E esse é o caso de Charlie: sua personalidade ingênua e dócil o faz acreditar que, talvez, Nick esteja apenas se descobrindo ou seja uma pessoa heternormativa que “passe longe do radar” – o que planta em seu coração uma semente de esperança perigosa. Ao longo dos episódios, percebemos que mensagens ambíguas colocam Charlie em uma espiral de perguntas sem resposta que o fazem sonhar com um futuro quase utópico. E, à medida que nos interessamos pela adorável construção de caráter do personagem principal, Lyn e Oseman (esta ficando responsável pelo roteiro também) cuidam para que Nick fuja dos padrões estereotipados e mergulhe em um arco de descoberta plausível e recheado de reviravoltas.
O público lida com investidas familiares a produções do gênero supracitado: à medida que o tempo passa, Nick revela que tem sentimentos por Charlie, apesar de não ter compreendido qual a sua orientação sexual, mas tem medo do que sua família e seus amigos irão pensar, pedindo para que o romance entre os dois seja mantido sob segredo. Charlie, infundido em pulsões empáticas, aceita isso como reflexo de uma sociedade que, mesmo em pleno século XXI, ainda não compreende a multiplicidade do ser humano e adota relacionamentos fora do padrão cis-heternormativo como “disruptivos”. É nessa sutileza pseudorromântica que as críticas de Oseman vêm à tona e aumentam a complexidade de uma narrativa tachada erroneamente como superficial.
Mesmo com certos deslizes, as engrenagens completam umas às outras com fluidez incrível, cortesia de uma coesão estilística invejável. O embate imagético entre cores pastéis e mais sóbrias corrobora o desenvolvimento das personas – enquanto Lyn e Oseman, responsáveis por todos os aspectos criativos do show, criam uma identidade que é mantida do começo ao fim, sem muitas ousadias exageradas e sem apressar o desenrolar da trama. Como se não bastasse, a simplicidade e a credulidade fornecida pela ambientação da série permitem que incursões sobre pessoas transexuais e bissexuais quebrem paradigmas conservadores e legitimam sua existência (de uma maneira similar, ainda que não tão explícita, como visto em ‘Sex Education’).
‘Heartstopper’ é uma belíssima e bem-vinda surpresa da Netflix que foge do desejo de ser mais do que consegue ser e, por isso, entrega uma jornada de autodescoberta e de empoderamento que reflete valores necessários para a atualidade. A química do elenco e a idiossincrasia com que cada protagonista e coadjuvante é tratado são os principais aspectos que nos fazem aceitar o convite para essa aventura – e já ansiar por mais episódios.