Espaço: a fronteira final.
O universo sempre foi matéria de exploração do homem – fosse na ciência, fosse na ficção. Desde que o mundo é mundo, pensadores e artistas voltavam sua atenção para o céu e para os astros que cintilavam ao longe, imaginando que seres habitavam os confins do vácuo. Desde H.G. Wells com seu revolucionário ‘Guerra dos Mundos’ até Christopher Nolan com seu tour-de-force ‘Interestelar’, diversas narrativas apresentaram panoramas únicos do que os outros planetas escondiam em suas atmosferas e cenários inabitáveis, por vezes nos fazendo confrontar o desconhecido, por vezes colocando em perspectiva a pequenez egocêntrica do ser humano. E, agora, chegou a vez da Netflix nos apresentar a sua própria dramatização de uma perigosa viagem tripulada para Marte.
Intitulada ‘Away’, a série de ficção científica flerta com dramas cotidianos que ganham uma dimensão extremamente gratificante e frustrante para qualquer um que se aventure ao longo de seus dez episódios. Distendendo-se em minutos e mais minutos de uma coesa e clássica investida estética, a obra criada por Andrew Hinderaker carrega consigo uma solidez mimética que foge das atribulações circinais de construções do gênero, deixando claro qual será seu foco – e quais são as cautelas necessárias para que as tramas não se repitam entre si. Eventualmente, a produção esbarra em certos obstáculos técnicos que não conseguem dosar com exatidão as fabulosidades sci-fi com os íntimos arcos de cada protagonistas, mas isso não importa: o público permanece envolvido do começo ao fim, torcendo angustiado para que tudo dê certo no final.
Hilary Swank lidera um time estelar de astronautas como a Comandante Emma Green, que finalmente realizou seu sonho de ir para o planeta vermelho – apesar dos sacrifícios que teve que fazer. Ela deixa para trás seu marido e colega de profissão, Matt (Josh Charles), que não conseguiu ir na viagem em virtude de uma condição genética degenerativa, e sua filha adolescente, Alexis (Talitha Bateman), que lida com o fato de que a mãe os deixará para trás, quase incomunicável, por três longos anos. Logo de cara, percebe-se que o dilema principal da série é conciliar a vida pessoal e a profissional sem perder a sanidade no confinamento da nave Atlas e sem deixar que a pressão de seus companheiros afete o trabalho a que foi confiada.
Enquanto Swank brilha em uma das melhores atuações de sua carreira, o roteiro supervisionado por Hinderaker garante que cada membro da equipe espacial tenha seu momento de glória. A ideia aqui é afastar-se dos convencionalismos de tantos longas-metragens ambientados no extraterrestre, que fornecem mínimos esclarecimentos acerca da personalidade dos personagens em prol de colocá-los à mercê de forças cósmicas que não podem ser premeditadas e controladas. De fato, é de se esperar que certas escolhas rendam-se aos thrillers de sobrevivência – e os realizadores sabem disso e usam as fórmulas a seu favor.
Em outras palavras, não temos o básico conflito entre alienígenas demoníacos e mortais e a impotência humana: Emma, junto aos outros tripulantes, percebe e nos faz perceber, querendo ou não, que prevenções não significam muito quando estamos resistindo à vastidão do vácuo. Por mais que testes preparatórios tenham sido feitos, eles são colocados à prova quando se deparam com erros vitais para o prosseguimento da viagem, como uma pane no sistema de fornecimento de água, o racionamento de suprimentos, defeitos nos painéis de energia e, no topo de tudo isso, o prospecto agourento da morte. Afinal, ninguém nunca havia viajado tão longe – e não saber o que os aguarda é o que move a curiosidade dos espectadores e das próprias personas.
Como se não bastasse, o pano de fundo se desenrola no âmbito externo e interno em uma complexa e catártica coreografia. Na Terra, Matt defronta desilusões de sua incapacidade motora, que coloca em xeque até mesmo sua a carreira na NASA, enquanto Alexis é obrigada a amadurecer agora que sua mãe e melhor amiga está há milhões de quilômetros de distância e não pode servir como confidente. No espaço, Emma enfrenta as múltiplas divergências de sua equipe, como a teimosia protetora de Misha (Mark Ivanir) e o obsessivo autocontrole da inteligentíssima Yu (Vivian Wu), ambos tendo testemunhado uma prova de fogo (literalmente) que os faz duvidar da capacidade de liderança da comandante. Temos também o otimismo desenfreado do traumatizado Ram (Ray Panthaki) e a polidez ferrenha de Kwesi (Ato Essandoh).
A cereja do bolo vem, sem sombra de dúvida, com a categórica performance dos atores e atrizes que permeiam os capítulos. Cada lágrima colocada em cena é uma representação anafórica daquilo que foi deixado de lado para que a sociedade progredisse em sua incansável carestia pela dominação e pelo controle – como um amor perdido, um pai que se foi precocemente ou uma nação que conta com o sucesso e não aceita o fracasso. São essas minúcias reflexivas que aumentam a carga dramática da série e, por vezes, falam muito mais alto do que qualquer outra coisa. Porém, como vemos à medida que nos aproximamos do season finale, a cronologia expande-se em oito extensos meses que transformam uma aventura de tirar o fôlego em um rotineiro ciclo claustrofóbico.
Aliado a eventos pungentes que analisam a frágil psique humana – e que são refletidas em reviravoltas interessantes, ainda que limitadas às fronteiras que criam -, temos a preocupação visual do show, que tem em mente a sobreposição da urgência corriqueira e da melancolia isolatória. Por isso mesmo, vê-se a preferência pela acidez da paleta alaranjada, acompanhada pela sóbria prostração do verde, nutrindo referências de produções como ‘Ad Astra’. Em contraposição, é fantástico como os enquadramentos e as inclinações procuram ousar, transformando a nave (que é cultivada como protagonista ao lado de seus passageiros) em um labirinto sem fim e em uma prisão sem grades.
‘Away’ é uma das melhores iterações do ano e, mesmo com seus breves defeitos, não deixa de nos convida para uma viagem inesquecível e emocionante que não enxerga fronteiras e cujo limite é o infinito.