Filme visto no Festival do Rio 2022.
As estruturas com que as sociedades se organizam dizem muito sobre a cultura, as crenças e os valores de um determinado povo. Há pontos que são comuns a todos, que atendem pelo nome de direitos humanos, mas há, também, pormenores que diferenciam uma cultura de outra, um povo de outro. E há, por fim, países nos quais os direitos humanos não são respeitados, e, sob o aspecto cultural, se valem desse viés para justificar barbáries cometidas contra a humanidade daquela população. Esse é o tema do thriller policial iraniano ‘Holy Spider’, que, após calorosa exibição sob protesto no Festival de Cannes 2022, teve sessões aplaudidíssimas no Festival do Rio 2022 e, em breve, estreará na plataforma da MUBI.
Rahimi (Zar Amir-Ebrahimi) é uma jovem repórter investigativa que volta à sua cidade natal, Mashhad – cidade sagrada do Irã – para fazer uma matéria sobre um serial killer à solta nas redondezas, que mata exclusivamente prostitutas na cidade e descarta seus corpos às margens das rodovias. Chamado de ‘Holy Spider’ pelos jornais, o assassino anda sendo aplaudido nas ruas por supostamente estar limpando-as das chamadas pecadoras. Para descobrir a verdadeira identidade do culpado, Rahimi fará de tudo, até mesmo se disfarçar como uma trabalhadora do sexo e colocar sua própria integridade em risco.
Escrito por Abi Abbasi e Afshin Kamran Bahrami com a supervisão de Jonas Wagner e direção do primeiro, o filme começa parecendo um típico drama do médio-oriente, com atuações contidas somadas a reações explosivas fagulhadas por situações que, a nossos olhos ocidentais, parecem corriqueiras. Lá pela metade do longa, a identidade do serial killer é revelada, o que faz o espectador questionar o porquê de a produção entregar o principal elemento do longa tão cedo – consequentemente, faz com que a gente se questione, então, como a produção preencherá as quase uma hora restantes. E é nessa virada que ‘Holy Spider’ mostra a sua excelência. Partindo desse plot comum a tantos outros filmes, e inspirado em eventos reais ocorridos de fato em Mashhad, o roteiro abre o debate para o machismo estrutural tóxico e o fanatismo religioso que não só impera na sociedade iraniana contemporânea, mas que também impede com que direitos humanos básicos sejam respeitados naquela região, especialmente às mulheres.
Dramaturgicamente, ‘Holy Spider’ contém suas emoções, acompanhando a estética do cinema iraniano que não se expõe mais do que precisa. Essa contenção é justamente o que eleva o nervosismo do enredo, pois, uma vez que a protagonista é uma mulher em um país masculino e machista, todo e qualquer ato dela pode ser fatal; em contrapartida, todos os outros personagens com quem ela contracena são homens, e suas atitudes são condizentes com a realidade local e a da ficção, o que eleva a tensão de ambos os núcleos.
Sem avisar, ‘Holy Spider’ é um soco no estômago disfarçado de thriller policial. Partindo da cruel realidade de ser mulher em um lugar dominado pelas regras masculinas, o longa merece todos os aplausos que ganhou nos festivais internacionais, entretendo e estimulando pensamento crítico ao mesmo tempo, e comprova que a realidade, no final das contas, é sempre pior do que se pode criar na ficção.