sábado , 21 dezembro , 2024

Crítica | Justina Machado encarna sua “Sweeney Todd” interior na divertida tragicomédia ‘Os Horrores de Dolores Roach’

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Washington Heights, 2003. Uma jovem latina chamada Dolores Roach (Justina Machado) é presa por porte de maconha e agressão policial e passa dezesseis anos numa penitenciária em Nova York, sonhando com o dia em que será liberada e poderá voltar para casa. Dezesseis anos mais tarde, ela termina sua sentença e, com duzentos dólares no bolso, volta para casa apenas para descobrir que seu antigo namorado desapareceu e que o bairro onde morava se tornou alvo da chegada de jovens alternativos de classe média alta que gentrificaram o que ela outrora chamava de lar. Sem saber o que fazer e sem lugar para ir, ela cruza caminho com um velho amigo de infância e começa a trabalhar como massagista – nem imaginando que sua vida viraria de cabeça para baixo.

A nova série do Prime Video é um grande épico tragicômico metalinguístico inspirado tanto na conhecida história ‘Sweeney Todd – O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet’ quanto na peça ‘Empanadas Locas’, estrelada por Daphne Rubin-Vega, mergulhando em um cenário marcado por faltas de oportunidades e tempos desesperadores que, de certa forma, “justificam” as ações de seus personagens em um vórtice de mentiras, traições e canibalismo. Guiado pela performance aplaudível de Machado, a produção é um tanto quanto desequilibrada, mas apresenta uma breve e instigante narrativa que nos faz assistir aos oito episódios de uma vez só.



Dolores é fruto de um sistema falho em que, forçada a abandonar a faculdade e a se envolver no cabuloso mundo do tráfico, é deixada de lado por aqueles em que confiava e se vê de mãos atadas quanto ao próprio futuro. Entrando em uma espiral emotiva, ela se vê “salva” por Luis Batista (Alejandro Hernandez), um antigo conhecido que, agora, é dono da loja de empanadas que herdou do pai. Desesperada por alguma solidez, ela é convidada a ficar no apartamento de Luis, localizado no subsolo do local, e decide, ainda que sem uma licença oficial, começar um singelo negócio de massagens. Mas o que é bom dura pouco e, apesar de começar a fazer algum dinheiro, ela vê seus sonhos se esvaírem quando Gideon Pearlman (Marc Maron), o senhorio, ameaça despejá-los. Em um ímpeto de fúria e de frustração, Dolores o mata e Luis, tentando ajudá-la, o mutila para usá-lo como recheio das empanadas.

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O escopo beira a absurdidade, mas, como se trata de uma releitura modernizada de Sweeney Todd, a ideia é comprada em um piscar de olhos. Aqui, examinamos como uma pessoa desesperançosa cruza limites inimagináveis para sobreviver e se vê engolfada em uma artimanha que normaliza tudo o que ela faz. Se o mundo a destruiu, porque ela não pode “retribuir o favor”? E, nessa atmosfera, Machado brilha de forma inigualável, reiterando uma versatilidade que já vinha sendo explorada em produções como ‘One Day at a Time’ e ‘Six Feet Under’, por exemplo, navegando entre a multiplicidade desconhecida da psique humana e, por fim, ascendendo a uma mulher que está cansada de temer e precisa agir.

A metalinguagem é um grande recurso utilizado pela série – mas não da forma que imaginamos: o episódio piloto já abre com uma encenação teatral sobre o aconteceu a Dolores e à polêmica envolvendo a morte de várias pessoas inocentes para a produção de empanadas que, ironicamente, caíram no gosto dos clientes (da mesma maneira que as tortas de carne da Sra. Lovett). E a protagonista é justificada como a narradora desse conto ao abordar a atriz que a interpreta nos palcos e contar o que aconteceu, de fato. Isso não é tudo: uma das várias pessoas que cruzou caminho com Dolores, o podcaster Caleb (Jeffery Self) foi o responsável por criar a peça e faturar uma quantidade considerável de dinheiro com o sofrimento dela.

O restante do elenco faz um trabalho memorável em cena: além de Machado e Hernandez, temos a bem-vinda presença de Nellie (Kita Updike), funcionária de Luis que também é arrastada para o enredo de forma inesperada e infeliz; K. Todd Freeman como Jeremiah, um açougueiro fanático por teorias da conspiração que começa a questionar o motivo de não entregar mais carne para a loja de empanadas; e a lendária Cyndi Lauper como Ruthie, uma sagaz e engenhosa detetive que ajuda Dolores a encontrar o ex-namorado (responsável por mandá-la para a cadeia) apenas para se tornar uma das vítimas. Lauper, inclusive, rouba os holofotes nas breves cenas em que aparece, aparecendo de forma quase irreconhecível e entregando uma performance irretocável e derradeira.

Há certos problemas estruturais que precisam ser mencionados – como o ritmo e certas escolhas de roteiro que prezam mais pela fórmula e pelo conforto do que pela originalidade. Ainda que os capítulos sejam curtos e girem em torno de meia hora, o desenrolar da história, eventualmente, chega a um beco sem saída e começa a dar voltas (o que significa que conseguimos prever os passos dos personagens antes que as coisas aconteçam); além disso, percebemos um certo cansaço à medida que nos aproximamos do season finale, cuja resolução abre tantas oportunidades para uma segunda temporada que chega a ser frustrante.

De qualquer forma, Os Horrores de Dolores Roach é uma grata surpresa do ano e nos diverte do começo ao fim, nos levando a desejar por mais. É sempre bom encontrarmos um título que entregue aquilo que se propõe – e, contando com a atuação precisa de Machado, essa é uma ótima pedida para ser devorada de uma só vez.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Washington Heights, 2003. Uma jovem latina chamada Dolores Roach (Justina Machado) é presa por porte de maconha e agressão policial e passa dezesseis anos numa penitenciária em Nova York, sonhando com o dia em que será liberada e poderá voltar para casa. Dezesseis anos mais tarde, ela termina sua sentença e, com duzentos dólares no bolso, volta para casa apenas para descobrir que seu antigo namorado desapareceu e que o bairro onde morava se tornou alvo da chegada de jovens alternativos de classe média alta que gentrificaram o que ela outrora chamava de lar. Sem saber o que fazer e sem lugar para ir, ela cruza caminho com um velho amigo de infância e começa a trabalhar como massagista – nem imaginando que sua vida viraria de cabeça para baixo.

A nova série do Prime Video é um grande épico tragicômico metalinguístico inspirado tanto na conhecida história ‘Sweeney Todd – O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet’ quanto na peça ‘Empanadas Locas’, estrelada por Daphne Rubin-Vega, mergulhando em um cenário marcado por faltas de oportunidades e tempos desesperadores que, de certa forma, “justificam” as ações de seus personagens em um vórtice de mentiras, traições e canibalismo. Guiado pela performance aplaudível de Machado, a produção é um tanto quanto desequilibrada, mas apresenta uma breve e instigante narrativa que nos faz assistir aos oito episódios de uma vez só.

Dolores é fruto de um sistema falho em que, forçada a abandonar a faculdade e a se envolver no cabuloso mundo do tráfico, é deixada de lado por aqueles em que confiava e se vê de mãos atadas quanto ao próprio futuro. Entrando em uma espiral emotiva, ela se vê “salva” por Luis Batista (Alejandro Hernandez), um antigo conhecido que, agora, é dono da loja de empanadas que herdou do pai. Desesperada por alguma solidez, ela é convidada a ficar no apartamento de Luis, localizado no subsolo do local, e decide, ainda que sem uma licença oficial, começar um singelo negócio de massagens. Mas o que é bom dura pouco e, apesar de começar a fazer algum dinheiro, ela vê seus sonhos se esvaírem quando Gideon Pearlman (Marc Maron), o senhorio, ameaça despejá-los. Em um ímpeto de fúria e de frustração, Dolores o mata e Luis, tentando ajudá-la, o mutila para usá-lo como recheio das empanadas.

O escopo beira a absurdidade, mas, como se trata de uma releitura modernizada de Sweeney Todd, a ideia é comprada em um piscar de olhos. Aqui, examinamos como uma pessoa desesperançosa cruza limites inimagináveis para sobreviver e se vê engolfada em uma artimanha que normaliza tudo o que ela faz. Se o mundo a destruiu, porque ela não pode “retribuir o favor”? E, nessa atmosfera, Machado brilha de forma inigualável, reiterando uma versatilidade que já vinha sendo explorada em produções como ‘One Day at a Time’ e ‘Six Feet Under’, por exemplo, navegando entre a multiplicidade desconhecida da psique humana e, por fim, ascendendo a uma mulher que está cansada de temer e precisa agir.

A metalinguagem é um grande recurso utilizado pela série – mas não da forma que imaginamos: o episódio piloto já abre com uma encenação teatral sobre o aconteceu a Dolores e à polêmica envolvendo a morte de várias pessoas inocentes para a produção de empanadas que, ironicamente, caíram no gosto dos clientes (da mesma maneira que as tortas de carne da Sra. Lovett). E a protagonista é justificada como a narradora desse conto ao abordar a atriz que a interpreta nos palcos e contar o que aconteceu, de fato. Isso não é tudo: uma das várias pessoas que cruzou caminho com Dolores, o podcaster Caleb (Jeffery Self) foi o responsável por criar a peça e faturar uma quantidade considerável de dinheiro com o sofrimento dela.

O restante do elenco faz um trabalho memorável em cena: além de Machado e Hernandez, temos a bem-vinda presença de Nellie (Kita Updike), funcionária de Luis que também é arrastada para o enredo de forma inesperada e infeliz; K. Todd Freeman como Jeremiah, um açougueiro fanático por teorias da conspiração que começa a questionar o motivo de não entregar mais carne para a loja de empanadas; e a lendária Cyndi Lauper como Ruthie, uma sagaz e engenhosa detetive que ajuda Dolores a encontrar o ex-namorado (responsável por mandá-la para a cadeia) apenas para se tornar uma das vítimas. Lauper, inclusive, rouba os holofotes nas breves cenas em que aparece, aparecendo de forma quase irreconhecível e entregando uma performance irretocável e derradeira.

Há certos problemas estruturais que precisam ser mencionados – como o ritmo e certas escolhas de roteiro que prezam mais pela fórmula e pelo conforto do que pela originalidade. Ainda que os capítulos sejam curtos e girem em torno de meia hora, o desenrolar da história, eventualmente, chega a um beco sem saída e começa a dar voltas (o que significa que conseguimos prever os passos dos personagens antes que as coisas aconteçam); além disso, percebemos um certo cansaço à medida que nos aproximamos do season finale, cuja resolução abre tantas oportunidades para uma segunda temporada que chega a ser frustrante.

De qualquer forma, Os Horrores de Dolores Roach é uma grata surpresa do ano e nos diverte do começo ao fim, nos levando a desejar por mais. É sempre bom encontrarmos um título que entregue aquilo que se propõe – e, contando com a atuação precisa de Machado, essa é uma ótima pedida para ser devorada de uma só vez.

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