Em 2019, ‘Coringa’ chegava aos cinemas e causava uma enorme comoção entre o público e a crítica – chamando a atenção por sua polêmica construção narrativa e por sua crueza cênica. Apesar das controvérsias temáticas e imagéticas que acompanharam-no, o longa-metragem conquistou inúmeras indicações ao Oscar, rendendo a Joaquin Phoenix a cobiçada estatueta de Melhor Ator por seu aplaudido e irretocável trabalho. Tal qual foi a nossa surpresa quando o diretor e roteirista Todd Phillips anunciou que estava trabalhando em uma sequência explorando os acontecimentos diretos do título original.
Intitulada ‘Coringa: Delírio a Dois’, a produção parte de uma premissa bastante conhecida no ramo da psicologia, a expressão folie à deux, que significa, grosso modo, histeria compartilhada. Logo, era apenas questão de tempo até que uma atriz fosse confirmada para viver o par romântico de Arthur Fleck/Coringa (Phoenix), Harleen Quinzel/Arlequina: a também vencedora do Oscar Lady Gaga. E, agora, somos presenteados com uma aguardada sequência que, apesar das boas intenções, não sabe exatamente o caminho que deseja seguir e resolve atirar para vários lados em uma mixórdia de tons e de escolhas narrativas que, sem sombra de dúvida, irão dividir o público.
Na trama, Arthur está preso no Asilo Arkham após o assassinato de inúmeras pessoas inocentes em Gotham City – incluindo o apresentador Murray Franklin, que causou um impacto significativo entre todos os habitantes da cidade. Confinado e esperando o julgamento, Arthur é forçado a conviver com guardas embriagados pelo mínimo poder que exercem dentro das facilidades psiquiátricas e consulta-se toda semana com sua advogada, Maryanne Stewart (Catherine Keener), esperando, algum dia, poder sair daquela prisão claustrofóbica. Porém, em um determinado dia, ele cruza caminho com uma mulher que também está internada no Asilo, Lee. Em pouco tempo, ambos começam a desfrutar de uma relação inesperadamente profunda e que alimenta o desejo de ambos de sair dali e viverem a própria vida em meio a uma caótica realidade que inventaram em suas mentes.
A partir daí, a trama se desenrola de forma bastante intrincada – e complexa demais para que os espectadores tenham uma aderência completa pela produção. Phillips, aliando-se a Scott Silver, arquiteta um enredo que transita entre o drama psicológico e o musical, mas esquecendo-se das dosagens certas para que o resultado seja firme o suficiente. Em outras palavras, há inúmeros momentos de potencial inenarrável que são mal aproveitados em virtude de circinais aspectos que nunca se concretizam como deveriam: ambos os gêneros explorados no longa funcionam como peças separadas, mas, quando unidas, deixam a desejar em virtude de um roteiro posto sobre uma corda bamba.
É notável como a ideia funcionaria caso Phillips abraçasse qualquer uma das ideias expostas de maneira mais assertiva. O cineasta, por exemplo, poderia se aproveitar do clássico ‘Chicago’ para transferir as sequências musicais ao campo da psique humana, em que a psicose compartilhada dos dois personagens principais seria traduzida nas várias referências aos icônicos filmes do gênero – como ‘A Roda da Fortuna’, ‘Tempos Modernos’, ‘O Picolino’ e até mesmo os programas de variedade encabeçados pela dupla Sonny & Cher. Porém, ao unir realidade e imaginação em um único fio condutor, a “loucura” pela qual preza torna-se apenas monótona e arrastada.
Enquanto as investidas narrativas emergem como o principal ponto de conflito para que a experiência da obra seja plena, o restante dos aspectos é aplaudível do começo ao fim. À medida que Phillips falha no enredo, ele se entrega de corpo e alma a uma direção que navega pelo exagero beligerante entre a simetria e a assimetria, deixando claro que Arthur cada vez mais cede à dança pela insanidade completa quando pareado com Lee; Lawrence Sher, retornando como diretor de fotografia, aposta elementos em uma espécie de neo-noir melancólico, puxando elementos do expressionismo e do surrealismo para compor cada um dos belíssimos quadros que pinta; Hildur Guðnadóttir, que encabeça a trilha sonora mais uma vez, parte de um ponto similar ao rearranjar os épicos instrumentos sonoros em um dissonante e fervoroso frenesi emocional, beirando uma bem-vinda sinestesia.
E é claro, não podemos deixar de mencionar o trabalho competente de um elenco que, em meio a diálogos superexpositivos e furos de roteiro, dá o seu melhor. Phoenix, novamente, rende-se a uma performance de tirar o fôlego, por mais que não ouse muito além do que fez na obra anterior; Gaga volta a se reiterar como uma das grandes atrizes da geração com uma atuação on point, dominando as cenas em que aparece – mas sofrendo com a falta de atenção e de cautela da história, deixando Lee mais apagada do que deveria. Brendan Gleeson é outro nome que desponta em meio a um ensemble talentoso: ao encarnar Jackie Sullivan, um dos guardas de Arkham, ele singra entre uma complacência derradeira e um ímpeto furioso que lhe dá a profundidade necessária para, talvez, lhe garantir uma indicação ao Oscar na categoria de Melhor Ator Coadjuvante.
À medida que os créditos de encerramento de ‘Coringa: Delírio a Dois’ sobem nas telonas, não podemos deixar de pensar que o filme é, por falta de outro termo, desnecessário. A produção não chega a ser ruim, e sim frustrante por não conseguir dizer o que quer em mais de duas horas de duração e por arrastar-se em momentos de extrema importância – deixando de lado, inclusive, as interessantes reviravoltas de que poderia se valer.