domingo , 22 dezembro , 2024

Crítica | Legalidade – boas intenções que não alcançam seu potencial

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Misturando ficção e realidade, longa traz a luz episódio desconhecido da história do Brasil

Já se convencionou dizer que o Brasil é um país sem memória. Mais do que isso, é um país que ainda tem dificuldades em reconhecer sua história e seus heróis. Todos os anos, novos longas trazem trajetórias que soam quase alienígenas para o público, mas que refletem o país em que vivemos hoje.

Legalidade” entre neste contexto. Ao trazer um capítulo conhecido por uma parcela muito pequena dos brasileiros – é uma história até bem difundida no sul do país, mas Brasil afora é raro conhecer alguém que tenha ouvido falar do levante gaúcho de 1961, onde Leonel Brizola, então, governador do Rio Grande do Sul, armou a população e entrincheirou-se no Palácio Piratini, mantendo um polo de resistência por 14 dias – ele, em dupla missão, procura revisar esse momento, ao mesmo tempo em que tenta alcançar o público com um ficcional triângulo amoroso.



O filme mistura fotos e arquivos em vídeo do ocorrido e, de forma bem didática – mas não por isso menos orgânica – desenha todo o episódio. Da renúncia de Jânio Quadros, “esmagado” por “forças terríveis”, passando pelo iminente golpe das forças armadas até a restituição, ainda que frágil, da democracia em um regime de semi parlamentarismo com João Goulart – que não resistiu muito tempo e acabou se convertendo na ditadura de 1964, 3 anos depois da primeira tentativa do exército.

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Em meio a tudo isso, Zeca Brito, que assina não apenas a direção, mas também o roteiro junto com Leo Garcia – roteiro que contou com um processo de mais de 6 anos de pesquisa – insere um triângulo amoroso formado por Cléo Pires, Fernando Alves Pinto e José Henrique Ligabue, interpretando a jornalista brasileira Cecília Ruiz a serviço de um veículo de imprensa americano, e os irmãos Luiz Carlos e Tonho, ambos, com contatos de certa influência dentro das esferas de poder no estado. Não fosse isso suficiente, ainda temos mais um núcleo encabeçado por Letícia Sabatella, fazendo ponte entre o período em questão, a ditadura de 1964, e os dias de hoje. Apesar de tantos elementos e o citado tom mais didático, o que enfraquece o filme é que ele acaba não ambicionado além disso.

Zeca, em entrevista, não esconde que sua paixão é, de certo modo, sua formação: nasceu com a TV e o ritmo do longa está mais próximo de uma obra da Globo como “Agosto“, com pretensões de registro histórico em ritmo de folhetim, que de um “O Destino de uma nação” (para citar um drama histórico mais recente). O trabalho é competente em apresentar sua história, mas não alcança a grandiloquência que poderia. Temos um textual extenso e recheado de sacadas espertas (algumas falham, mas são perdoáveis), ainda que não seja pesado, e poucas imagens marcantes, momentos emocionais de impacto. Pode ser uma escolha adequada para um drama humano, mas aqui falamos de um fato de importância nacional, é uma história sobre heróis, pessoas maiores que a vida é isso precisa ficar evidente.

O núcleo de Sabatella acaba enfraquecendo ainda mais o filme como um todo, pela quebra na narrativa que vem construindo até então para deixar claro que “estamos falando sobre um período terrível do país e que precisa ser investigado”. Ali o filme muda o tom e mistura elementos de semi documentário com notas de um potencial filme de advogados – com uma mulher procurando informações sobre sua mãe para fazer justiça a ela. Diga-se, o filme navega por muitos estilos, o que, por vezes, também dificulta abraçá-lo como um todo.

Do conto histórico, passamos para um romance, depois para um thriller político, então uma trama de espionagem… é muita coisa. O que ajuda a manter a coesão é o clima noir que Zeca conduz por boa parte do filme, mostrando o bom uso de sua formação mais voltada ao folhetim.

Leonardo Machado faz um ótimo trabalho no papel de Brizola. Em seu último trabalho – o ator faleceu em 2018, vítima de um câncer – ele carrega nas cores desse personagem do folclore político brasileiro sem soar caricato. Cleo Pires, por outro lado, carece de mais chão. Seu trabalho é competente, ela trabalha bem os momentos de intensidade – o forte da atriz, que mata com um olhar expressivo – mas, por vezes, parece carecer de vulnerabilidade, e Cecilia exige isso dela. É uma personagem presa numa gangorra, mas que passa mais credibilidade quando misteriosa do que quando exposta. Fernando Alves Pinto está confortável no papel de Luiz Carlos. Apesar da estrutura melodramática do filme, ele não se deixa contaminar por isso, e mantém aquela figura plácida no exterior, com palavras pausadas e comedidas, mesmo quando parece querer fuzilar a pessoa com quem conversa. Isso é constante no ator, como pode-se ver em outros filmes dele. Essa é uma ferramenta que ele sabe usar bem, e aqui, ajuda a sedimentar alguns momentos.

Mas é José Henrique Ligabue, dos três, quem melhor ressoa o momento da trama. Em um filme que aspira emular o clima de obras como “Casablanca“, “Marrocos“, “Gilda“, misturando política, ação, sexualidade e mesmo espionagem, ele destoa desses elementos sem parecer delicado, trazendo as características do homem comum da época – como uma certa inocência em relação ao sexo oposto, que flerta com o bobo, sem cair na caricatura. Ele é quase um alívio cômico, mas não chegamos a rir dele.

Letícia Sabatella pegou o mais ingrato dos papéis. Sua personagem, e tudo relacionado a ela, soa desnecessário para a trama em si. É uma parte do filme que acaba o tornando mais panfletária que denunciativo. A trama da mulher, vítima da ditadura, procurando informações sobre os pais desaparecidos no período, cai pesado, todas as vezes, quebrando a história. A intenção de Zeca é clara e louvável, mas desnecessária. A história construída nos anos de 1960 por si só, já apresenta tudo que precisamos para entender e fazer os paralelos com os dias de hoje. A personagem surge perdida, numa trama própria de resgate de honra que, na própria história, é apresentada. Soa redundante, forçado, e diminui a ficção. Letícia é uma ótima atriz, faz muito com muito pouco, mas aqui a estrutura em que foi inserida deixam na ruidosa em tela. No fim, quando a personagem encontra “paz” com sua jornada, parece entrar nos eixos, mas até então, era incômodo ver suas inserções.

No geral, “Legalidade” assume mais um papel documental que de entretenimento. E pelas entrevistas com o diretor Zeca Brito não era difícil imaginar isso. A obra não é menor por conta dessa escolha, mas poderia ser muito mais marcante e destacável no cenário atual se procurasse um roteiro menos expositivo sobre o movimento e mais focado na importância dele, não tão didático. As liberdades assumidas ao inserir uma trama paralela fictícia foi um grande acerto, mas poderia ter mais profundidade nas razões que na superficialidade da ação e reação que o filme aborda.

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Já se convencionou dizer que o Brasil é um país sem memória. Mais do que isso, é um país que ainda tem dificuldades em reconhecer sua história e seus heróis. Todos os anos, novos longas trazem trajetórias que soam quase alienígenas para o público, mas que refletem o país em que vivemos hoje.

Legalidade” entre neste contexto. Ao trazer um capítulo conhecido por uma parcela muito pequena dos brasileiros – é uma história até bem difundida no sul do país, mas Brasil afora é raro conhecer alguém que tenha ouvido falar do levante gaúcho de 1961, onde Leonel Brizola, então, governador do Rio Grande do Sul, armou a população e entrincheirou-se no Palácio Piratini, mantendo um polo de resistência por 14 dias – ele, em dupla missão, procura revisar esse momento, ao mesmo tempo em que tenta alcançar o público com um ficcional triângulo amoroso.

O filme mistura fotos e arquivos em vídeo do ocorrido e, de forma bem didática – mas não por isso menos orgânica – desenha todo o episódio. Da renúncia de Jânio Quadros, “esmagado” por “forças terríveis”, passando pelo iminente golpe das forças armadas até a restituição, ainda que frágil, da democracia em um regime de semi parlamentarismo com João Goulart – que não resistiu muito tempo e acabou se convertendo na ditadura de 1964, 3 anos depois da primeira tentativa do exército.

Em meio a tudo isso, Zeca Brito, que assina não apenas a direção, mas também o roteiro junto com Leo Garcia – roteiro que contou com um processo de mais de 6 anos de pesquisa – insere um triângulo amoroso formado por Cléo Pires, Fernando Alves Pinto e José Henrique Ligabue, interpretando a jornalista brasileira Cecília Ruiz a serviço de um veículo de imprensa americano, e os irmãos Luiz Carlos e Tonho, ambos, com contatos de certa influência dentro das esferas de poder no estado. Não fosse isso suficiente, ainda temos mais um núcleo encabeçado por Letícia Sabatella, fazendo ponte entre o período em questão, a ditadura de 1964, e os dias de hoje. Apesar de tantos elementos e o citado tom mais didático, o que enfraquece o filme é que ele acaba não ambicionado além disso.

Zeca, em entrevista, não esconde que sua paixão é, de certo modo, sua formação: nasceu com a TV e o ritmo do longa está mais próximo de uma obra da Globo como “Agosto“, com pretensões de registro histórico em ritmo de folhetim, que de um “O Destino de uma nação” (para citar um drama histórico mais recente). O trabalho é competente em apresentar sua história, mas não alcança a grandiloquência que poderia. Temos um textual extenso e recheado de sacadas espertas (algumas falham, mas são perdoáveis), ainda que não seja pesado, e poucas imagens marcantes, momentos emocionais de impacto. Pode ser uma escolha adequada para um drama humano, mas aqui falamos de um fato de importância nacional, é uma história sobre heróis, pessoas maiores que a vida é isso precisa ficar evidente.

O núcleo de Sabatella acaba enfraquecendo ainda mais o filme como um todo, pela quebra na narrativa que vem construindo até então para deixar claro que “estamos falando sobre um período terrível do país e que precisa ser investigado”. Ali o filme muda o tom e mistura elementos de semi documentário com notas de um potencial filme de advogados – com uma mulher procurando informações sobre sua mãe para fazer justiça a ela. Diga-se, o filme navega por muitos estilos, o que, por vezes, também dificulta abraçá-lo como um todo.

Do conto histórico, passamos para um romance, depois para um thriller político, então uma trama de espionagem… é muita coisa. O que ajuda a manter a coesão é o clima noir que Zeca conduz por boa parte do filme, mostrando o bom uso de sua formação mais voltada ao folhetim.

Leonardo Machado faz um ótimo trabalho no papel de Brizola. Em seu último trabalho – o ator faleceu em 2018, vítima de um câncer – ele carrega nas cores desse personagem do folclore político brasileiro sem soar caricato. Cleo Pires, por outro lado, carece de mais chão. Seu trabalho é competente, ela trabalha bem os momentos de intensidade – o forte da atriz, que mata com um olhar expressivo – mas, por vezes, parece carecer de vulnerabilidade, e Cecilia exige isso dela. É uma personagem presa numa gangorra, mas que passa mais credibilidade quando misteriosa do que quando exposta. Fernando Alves Pinto está confortável no papel de Luiz Carlos. Apesar da estrutura melodramática do filme, ele não se deixa contaminar por isso, e mantém aquela figura plácida no exterior, com palavras pausadas e comedidas, mesmo quando parece querer fuzilar a pessoa com quem conversa. Isso é constante no ator, como pode-se ver em outros filmes dele. Essa é uma ferramenta que ele sabe usar bem, e aqui, ajuda a sedimentar alguns momentos.

Mas é José Henrique Ligabue, dos três, quem melhor ressoa o momento da trama. Em um filme que aspira emular o clima de obras como “Casablanca“, “Marrocos“, “Gilda“, misturando política, ação, sexualidade e mesmo espionagem, ele destoa desses elementos sem parecer delicado, trazendo as características do homem comum da época – como uma certa inocência em relação ao sexo oposto, que flerta com o bobo, sem cair na caricatura. Ele é quase um alívio cômico, mas não chegamos a rir dele.

Letícia Sabatella pegou o mais ingrato dos papéis. Sua personagem, e tudo relacionado a ela, soa desnecessário para a trama em si. É uma parte do filme que acaba o tornando mais panfletária que denunciativo. A trama da mulher, vítima da ditadura, procurando informações sobre os pais desaparecidos no período, cai pesado, todas as vezes, quebrando a história. A intenção de Zeca é clara e louvável, mas desnecessária. A história construída nos anos de 1960 por si só, já apresenta tudo que precisamos para entender e fazer os paralelos com os dias de hoje. A personagem surge perdida, numa trama própria de resgate de honra que, na própria história, é apresentada. Soa redundante, forçado, e diminui a ficção. Letícia é uma ótima atriz, faz muito com muito pouco, mas aqui a estrutura em que foi inserida deixam na ruidosa em tela. No fim, quando a personagem encontra “paz” com sua jornada, parece entrar nos eixos, mas até então, era incômodo ver suas inserções.

No geral, “Legalidade” assume mais um papel documental que de entretenimento. E pelas entrevistas com o diretor Zeca Brito não era difícil imaginar isso. A obra não é menor por conta dessa escolha, mas poderia ser muito mais marcante e destacável no cenário atual se procurasse um roteiro menos expositivo sobre o movimento e mais focado na importância dele, não tão didático. As liberdades assumidas ao inserir uma trama paralela fictícia foi um grande acerto, mas poderia ter mais profundidade nas razões que na superficialidade da ação e reação que o filme aborda.

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