Em 2020, Leigh Whannell dava vida a um dos filmes de terror mais aclamados da década – ‘O Homem Invisível’. Desvencilhando-se das fórmulas do gênero e construindo um suspense atmosférico que inclusive apostou fichas em temáticas como abuso psicológico e relacionamento tóxicos, Whannell mostrou que veio para revitalizar um gênero já maculado com produções repetitivas e formulaicas, deixando claro que sempre é possível apresentar novas perspectivas a narrativas clássicas. Agora, cinco anos depois de uma obra-prima que, de fato, merecia mais atenção, ele nos convida para mais um icônico conto sobrenatural com ‘Lobisomem’.
A trama é centrada em Blake (Christopher Abbott), um homem marcado por traumas de uma infância conturbada que volta para a casa de sua família no interior de Oregon após a morte do pai. Realocando-se para a fazenda que pertencia ao falecido patriarca ao lado de sua esposa Charlotte (Julia Garner) e da filha Ginger (Matilda Firth), ele descobre que segredos de décadas atrás ainda se escondem pela densa e obscura floresta que cerca a fazenda – incluindo uma criatura mortal que estava na mira do pai três décadas atrás e que, ao que tudo indica, permanece viva e sedenta por sangue.
Após chegarem a Oregon, Blake e sua família cruzam caminho com esse monstro e, a princípio sem perceber, o nosso protagonista se fere pelas garras de um ser metade lobo e metade homem. À medida que tenta proteger Charlotte e Ginger, ele percebe que, na verdade, o ferimento o está transformando, gradativamente, em uma criatura similar – dando início e continuidade a um reino de terror e caos que pode colocar em xeque a vida de todos. E é dessa maneira que a atemporal mitologia envolvendo os lobisomens e até mesmo os licantropos ganha um capítulo ao mesmo tempo mimético e original – garantindo uma experiência sinestésica aos espectadores, por mais que certas falhas despontem aqui e ali.
Antes de mais nada, é preciso notar que ‘Lobisomem’ não é um filme de terror, por assim dizer. Seguindo os passos de sua obra predecessora, Whannell traz à tona elementos do suspense para construir uma derradeira ambientação de angústia e medo, permitindo que a redonda narrativa transforme-se em um espetáculo visual. Em outras palavras, não espere uma contagem significativa de mortos ou uma quantidade exagerada de sangue, porque essa não é a ideia por trás do projeto. Ao trazer aspectos do body horror e aliá-los a efeitos especiais práticos e que remontam a obras dos anos 1980 e 1990, por exemplo – bem como às primeiras versões desse enredo bastante popular -, o cineasta nos convida para uma jornada burlesca e expressionista que pega convencionalismos e os remonta a seu bel-prazer, seja na escura e mística fotografia que permeia o casarão da família, seja na monocromática paleta de cores que auxilia na construção de um claustrofóbico cenário a céu aberto.
Diferente de ‘O Homem Invisível’, Whannell não quer utilizar o gênero como plataforma para críticas sociais, e sim arquitetar um conto com começo, meio e fim prático e que entrega exatamente o que promete. O realizador, também responsável pelo roteiro ao lado de Corbett Tuck, promove uma modernização inspirada que serve como carta de amor a obras similares e que estende-se por breves cem minutos de tela – impedindo que “barrigas” sejam criadas e suprimindo quaisquer excessos desnecessários. Afinal, essa frenética experiência cinematográfica não demora muito para nos fisgar, contando com sequências bem coreografadas que discorrem ao longo de uma noite e que usam pequenas explicações e backstories para fornecer um pouco de complexidade aos personagens – e que, num âmbito macrocósmico, fazem sentido dentro dos arcos delineados.
Se Whannell acerta em cheio em boa parte do que pretende fazer, o elenco tem espaço de sobra para brilhar com performances incríveis. Garner já nos encantara com sua versatilidade invejável em títulos como ‘Ozark’ e ‘Inventando Anna’, e aqui rende-se a uma potente interpretação que presta homenagens às scream queens da sétima arte; a jovem Firth emerge como um emblema para as precoces crianças de filmes de terror e deixando que suas cruas emoções tomem espaço. Porém, é Abbott quem domina as telas ao transmutar-se no monstro titular se precisar abrir a boca – e carregando no olhar as mágoas de um passado não muito distante que humanizam uma das criaturas mais icônicas do cinema.
O longa não é destituído por completo de equívocos, boa parte restrita ao roteiro. Algumas escolhas de tom maculam o escopo de Whannell, principalmente quando resolvem se voltar para o drama familiar e culminam em um novelesco punhado de diálogos clichês e quase risíveis. É claro que tais deslizes são ofuscados, em sua maioria, pelas engrenagens que de fato funcionam na estrutura da obra – mas, às vezes, é impossível não pensar que alguns deles poderiam ter sido apagados através de uma cautela artística mais concisa.
Com ‘Lobisomem’, Leigh Whannell reitera sua habilidade e sua paixão por filmes de terror ao não se deixar levar pela ambição desmedida e garantir um entretenimento aprazível e satisfatório. Mesmo com erros pontuais, o filme reaviva um centenário imaginário popular através de uma sinestesia ímpar e envolvente.