Durante séculos foi divulgada a ideia de que o Brasil fora descoberto pelos portugueses e que, desde então, falava uma única língua: a portuguesa. Dessa interpretação errônea vieram diversas tentativas de homogeneizar a nossa cultura e o nosso falar, com a implementação, entre outras, de uma gramática normativa unificada para todos os países colonizados pelo território português, numa tentativa de fazer com que todo mundo falasse e escrevesse igual – por conseguinte, que todo mundo se entendesse. Uma tentativa frustrada de tentar controlar o povo, uma vez que a língua é orgânica e dinâmica, portanto, incontrolável. Ao mesmo tempo, uma tentativa equivocada que ocultava as muitas outras línguas faladas nesse território chamado de Brasil. Atenta a este último ponto, a HBO lança em novembro próximo a série ‘Línguas da Nossa Língua’, que teve pré-estreia na programação do Festival do Rio 2023 e que também será exibida antecipadamente na 47ª Mostra de Cinema Internacional de São Paulo.
Dividida em quatro episódios de quase uma hora cada, a produção do realizador Estevão Ciavatta, sob a consultoria do doutor em Literatura Brasileira Eucanaã Ferraz, constrói, acima de tudo, um belíssimo retrato sobre a diversidade do povo brasileiro. Ao partir do mote “línguas que falamos”, o roteiro investiga simultaneamente gramática e prática, normatividade e execução, letra e poesia, num movimento contínuo que demonstra que independentemente do que se diga, a língua hoje falada no Brasil já não é mais, há muito tempo, aquela que se convencionou chamar de língua portuguesa. Aqui fala-se uma variação desta língua, entendida como língua brasileira, cuja população falante é vinte vezes maior do que a original de Portugal, de modo que não faz o menor sentido duzentas milhões de pessoas tentarem se adequar a um formato que nem mesmo às dez milhões de pessoas de lá obedecem.
Para respaldar seu argumento com solidez o roteiro de Estevão entrevista vários especialistas, desde linguista renomados portugueses, professores da língua aqui no Brasil (Yeda Pessoa de Castro) e artistas reconhecidamente provocadores e recriadores dessa mesma língua, como Caetano Veloso, Maria Bethânia e Nélida Piñon. Na pesquisa foram incluídas as línguas portuguesa, galega, guarani, baniwa, tukano, patxohã, iorubá, quimbundo, nheengatu, librase pajubá, bem como também a língua da Tabatinga (uma mistura do falar dos escravizados para lá enviados com o guarani local de outrora), e a língua de resistência das travestis, documentada pela primeira vez numa produção. Também foram registradas sete variações da língua oficial portuguesa: o caipira, o tapuia, o bahianês, o carioquês, o sergipanês, o mineirês (cada qual ressignificando sentidos a partir de vocabulários e construções próprias) e a linguagem neutra, variação mais recente que busca a não marcação de gênero nas palavras.
Na série, o que confere dinamismo à essa pesquisa (que não é novidade para estudantes de Letras) é a montagem, que intercala depoimentos de falantes distintos concordando sobre ideias mesmo estando geograficamente distantes. ‘Línguas da Nossa Língua’ é uma bela série para se apaixonar pela diversidade do Brasil, que comprova que quem faz a língua é seu povo – e, no caso do povo brasileiro, somos uma língua que são muitas. Imperdível!