sábado , 2 novembro , 2024

Crítica | Little Fires Everywhere – Série lançada na Amazon Prime é uma das melhores do ano

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Em 1969, a lendária poeta Maya Angelou publicou um livro autobiográfico intitulado Eu Sei Por Que o Pássaro na Gaiola Canta, cujo tema principal é a liberdade. Não é surpresa que o poema homônimo, recheado de metáforas e de análises antropológicas sobre encarceramento, opressão e autonomia, sirva como tema principal de Pequenos Incêndios por Toda Parte, um dos melhores dramas do ano que foi entregue com altas expectativas pelo Hulu. Entre atuações incríveis e ácidos diálogos que discutem sobre preconceito, orientação sexual e privilégios raciais, é inegável dizer que cada novo capítulo veio como um forte soco no estômago, desconstruindo tudo o que esperávamos em prol de reviravoltas chocantes, personagens marcantes – e uma resolução digna de qualquer tragédia social de Bertold Brecht ou Tennessee Williams.

Se os primeiros episódios funcionaram como uma apresentação concisa de todas as tramas e subtramas envolvendo os protagonistas, as iterações consecutivas transformaram-se em uma fusão melodramática do confronto geracional entre fortes personas femininas, lideradas pelo impactante contraste entre Mia Warren (Kerry Washington) e Elena Richardson (Reese Witherspoon) – e essa convulsionada exploração da psique humana é fruto do duro trabalho de Liz Tigelaar em destrinchar o romance homônimo de Celeste Ng e traduzir para as telinhas um enredo pincelado com intrigas, suspense e amadurecimento compulsório. Em outras palavras, os estereótipos clássicos dos dramas noventistas de Mia e Elena deixam de existir para impulsionar passados traumáticos de duas personalidades com criações extremamente diferente que entram no embate de uma supremacia ideológica que caminha para o caos.

De um lado, Mia se posta como uma profissional artística e mãe solteira que cuida da filha, Pearl (Lexi Underwood), caminhando pelas ruas impecáveis da pitoresca Shaker Heights enquanto chama a atenção de todos por sua pose irreverente e audaciosa; de outro, Elena é colacionada pela presença da personagem de Washington, recusando-se a deixar que seu papel como dona de casa e jornalista exemplar seja colocada em xeque – o que acrescenta algumas camadas cômicas quando pensamos na egolatria e no perfeccionismo excessivos com os quais Witherspoon brinca. E é claro que esses fortes gênios são refletidos nas filhas – seja por completo, seja em partes -, perpetuando uma corrida odiosa que oscila desde a síndrome do cavaleiro branco até mentiras cruéis que escondem-se da luz do dia.

O time de diretores cuida para que nada ocorra como o planejado, promovendo twists nas sequências mais inesperadas para garantir que o público fique vidrado do começo ao fim – o que funciona bem mais do que o imaginado. Em cada um dos episódios, nomes como Lynn Shelton e Michael Weaver rendem-se arduamente a intrincados arcos narrativos que oscilam entre a vítima e o vilão, o bem e o mal, a justiça e a iniquidade; mais do que isso, os personagens recusam-se a serem rotulados em extremos de uma mesma moeda, preferindo se equilibrarem em uma corda bamba prestes a romper. As coisas ganham ainda mais densidade quando Mia resolve ajudar uma colega de trabalho, Bebe Chow (Huang Lu), a recuperar a bebê que foi forçada a abandonar por não ter condições de cuidar dela. O problema é que essa mesma criança foi parar nos braços de Linda (Rosemarie DeWitt), melhor amiga de Elena – dando início a uma batalha judicial visceral.

O teor do roteiro busca inspiração em inúmeras obras-primas do suspense e do drama – deixando “claro” de que lado a história irá favorecer. Mais do que isso, as tramas usam e abusam do conceito de foreshadowing, incrementando alguns diálogos com declarações pesadas e verdadeiras acerca de infraestrutura e condição socioeconômica das minorias (no caso, representadas pela presença de Mia, Pearl e Bebe). Não é surpresa que, no final das contas, Linda consegue a guarda da filha definitivamente, o que não significa muita coisa. Conforme nos aproximamos do final, percebemos que as tentativas de manter o status quo e banir as “forasteiras” não serviram de nada: Bebe sequestra o bebê e foge, enquanto Elena observa impotente seu império perfeito ruir em frangalhos.

A série não pensa duas vezes antes de escancarar a diferença gritante entre fachadas e realidade: Witherspoon busca referências de outros trabalhos recentes na televisão, como a verborragia de Madeleine em Big Little Lies e a obstinação incontrolável de Bradley em The Morning Show, entregando uma atuação irretocável que atravessa a ascensão e a queda de uma socialite privilegiada que não enxerga nada além de seu mundo de oportunidades e escolhas mal feitas; Washington, por sua vez, abandona sua performance em Scandal para fornecer o exato oposto: uma trabalhadora indesculpável que fará de tudo para lutar por justiça e proteger as pessoas que precisam de ajuda. No final das contas, percebemos que Elena vinha provocando “pequenos incêndios por todo lugar”, culminando no desmantelamento de tudo que conhece em um finale espetacular – ainda que seja mais melodramático do que o necessário.

Eventualmente, o pássaro clamando por liberdade se livra da gaiola e percebe que há um mundo de possibilidades bem à sua frente; e, logo atrás dele, há o seu ninho improvisado, a prisão que antes chamava de casa, que agora arde em chamas e cintila uma mãe que não percebeu seus erros e que só agora sofre as consequências de seus atos – enquanto observa, impotente, mudanças drásticas que iniciam um conturbado capítulo de sua vida. E é dentro desses simbolismos poéticos que ‘Pequenos Incêndios por Todo Lugar’ ganha uma camada bem mais profunda e deliciosamente angustiante pelos motivos certos e muito bem-vindos.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Se os primeiros episódios funcionaram como uma apresentação concisa de todas as tramas e subtramas envolvendo os protagonistas, as iterações consecutivas transformaram-se em uma fusão melodramática do confronto geracional entre fortes personas femininas, lideradas pelo impactante contraste entre Mia Warren (Kerry Washington) e Elena Richardson (Reese Witherspoon) – e essa convulsionada exploração da psique humana é fruto do duro trabalho de Liz Tigelaar em destrinchar o romance homônimo de Celeste Ng e traduzir para as telinhas um enredo pincelado com intrigas, suspense e amadurecimento compulsório. Em outras palavras, os estereótipos clássicos dos dramas noventistas de Mia e Elena deixam de existir para impulsionar passados traumáticos de duas personalidades com criações extremamente diferente que entram no embate de uma supremacia ideológica que caminha para o caos.

De um lado, Mia se posta como uma profissional artística e mãe solteira que cuida da filha, Pearl (Lexi Underwood), caminhando pelas ruas impecáveis da pitoresca Shaker Heights enquanto chama a atenção de todos por sua pose irreverente e audaciosa; de outro, Elena é colacionada pela presença da personagem de Washington, recusando-se a deixar que seu papel como dona de casa e jornalista exemplar seja colocada em xeque – o que acrescenta algumas camadas cômicas quando pensamos na egolatria e no perfeccionismo excessivos com os quais Witherspoon brinca. E é claro que esses fortes gênios são refletidos nas filhas – seja por completo, seja em partes -, perpetuando uma corrida odiosa que oscila desde a síndrome do cavaleiro branco até mentiras cruéis que escondem-se da luz do dia.

O time de diretores cuida para que nada ocorra como o planejado, promovendo twists nas sequências mais inesperadas para garantir que o público fique vidrado do começo ao fim – o que funciona bem mais do que o imaginado. Em cada um dos episódios, nomes como Lynn Shelton e Michael Weaver rendem-se arduamente a intrincados arcos narrativos que oscilam entre a vítima e o vilão, o bem e o mal, a justiça e a iniquidade; mais do que isso, os personagens recusam-se a serem rotulados em extremos de uma mesma moeda, preferindo se equilibrarem em uma corda bamba prestes a romper. As coisas ganham ainda mais densidade quando Mia resolve ajudar uma colega de trabalho, Bebe Chow (Huang Lu), a recuperar a bebê que foi forçada a abandonar por não ter condições de cuidar dela. O problema é que essa mesma criança foi parar nos braços de Linda (Rosemarie DeWitt), melhor amiga de Elena – dando início a uma batalha judicial visceral.

O teor do roteiro busca inspiração em inúmeras obras-primas do suspense e do drama – deixando “claro” de que lado a história irá favorecer. Mais do que isso, as tramas usam e abusam do conceito de foreshadowing, incrementando alguns diálogos com declarações pesadas e verdadeiras acerca de infraestrutura e condição socioeconômica das minorias (no caso, representadas pela presença de Mia, Pearl e Bebe). Não é surpresa que, no final das contas, Linda consegue a guarda da filha definitivamente, o que não significa muita coisa. Conforme nos aproximamos do final, percebemos que as tentativas de manter o status quo e banir as “forasteiras” não serviram de nada: Bebe sequestra o bebê e foge, enquanto Elena observa impotente seu império perfeito ruir em frangalhos.

A série não pensa duas vezes antes de escancarar a diferença gritante entre fachadas e realidade: Witherspoon busca referências de outros trabalhos recentes na televisão, como a verborragia de Madeleine em Big Little Lies e a obstinação incontrolável de Bradley em The Morning Show, entregando uma atuação irretocável que atravessa a ascensão e a queda de uma socialite privilegiada que não enxerga nada além de seu mundo de oportunidades e escolhas mal feitas; Washington, por sua vez, abandona sua performance em Scandal para fornecer o exato oposto: uma trabalhadora indesculpável que fará de tudo para lutar por justiça e proteger as pessoas que precisam de ajuda. No final das contas, percebemos que Elena vinha provocando “pequenos incêndios por todo lugar”, culminando no desmantelamento de tudo que conhece em um finale espetacular – ainda que seja mais melodramático do que o necessário.

Eventualmente, o pássaro clamando por liberdade se livra da gaiola e percebe que há um mundo de possibilidades bem à sua frente; e, logo atrás dele, há o seu ninho improvisado, a prisão que antes chamava de casa, que agora arde em chamas e cintila uma mãe que não percebeu seus erros e que só agora sofre as consequências de seus atos – enquanto observa, impotente, mudanças drásticas que iniciam um conturbado capítulo de sua vida. E é dentro desses simbolismos poéticos que ‘Pequenos Incêndios por Todo Lugar’ ganha uma camada bem mais profunda e deliciosamente angustiante pelos motivos certos e muito bem-vindos.

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