sábado , 23 novembro , 2024

Crítica| Lizzie – Uma tragédia marcada pelo patriarcado

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Tragédias reais que ficam no imaginário popular quase sempre rendem adaptações para a Literatura ou Cinema – afinal, os pormenores da história, por si só, já ajudam na criação de um roteiro que desperta a atenção do público. Esse é o caso de Lizzie Borden, acusada de assassinar o pai e a madastra a sangue frio no dia 4 de agosto de 1892. Embora tenha sido declarada inocente e até hoje não se saiba quem realmente foi o responsável pelas mortes de Andrew e Abby Borden, Lizzie é lembrada como uma assassina fria que saiu impune do julgamento – e, como era de se esperar, sua história rendeu livros, séries, filmes e até um curta-metragem (The Old Sister, de 1955) apresentado por ninguém menos que Alfred Hitchcock. O mais recente longa atende pelo nome de Lizzie, e, com algumas modificações no enredo real, traz Chloë Sevigny e Kristen Stewart vivendo um romance proibido em uma casa onde o patriarcado impera.

No filme de Craig Macneill, a empregada que também estava na casa no dia do assassinato real em 1892, Bridget Sullivan, não é apenas uma mera coadjuvante na história: ela vive um amor proibido com Lizzie e essa paixão, impedida pelo pai, teria sido uma das principais motivações para o trágico acontecimento. Embora nada tenha a ver com as mortes em si, até por ter se dado depois, o plot do relacionamento com outra mulher provavelmente foi inspirado no boato de que Borden teve um caso com a atriz Nance O’Neil em 1904, que teria lhe causado grandes problemas emocionais depois do término em 1906. No entanto, verdade ou não, ter criado um romance entre a criada e a patroa foi uma boa sacada no roteiro por só entregar mais camadas para uma personagem que já é intrigante o suficiente.



Não poderia ter tido uma escolha melhor que Chloë Sevigny para dar vida à Lizzie. Dos momentos de crise da personagem às horas em que ela desafiava o pai (Jamey Sheridan) ou olhava para Bridget (Kristen Stewart) com amor, ela mostra uma atuação convincente e digna de aplausos. O mesmo pode-se dizer de Stewart, que aqui tem como maior trunfo o olhar – que transita muito bem do sofrimento de uma empregada que sofre abusos do patrão ao desejo ardente por uma das patroas. Por mais que muitos ainda torçam o nariz para suas atuações (ainda pela fase hater da saga Twilight), é inegável o quanto a atriz evoluiu e já pode estar entre os nomes mais relevantes de estrelas de sua geração. Ainda que este não seja o seu melhor trabalho (muito pelo brilho em cena de Sevigny e por comparações com Runaways – Garotas do Rock e Personal Shopper), ela definitivamente não decepciona.

Contando com um elenco de peso, os demais personagens também são representados com ótimas atuações. Jamey Sheridan, que vive Andrew Borden, consegue fazer o público sentir ódio do autoritarismo com que ele trata a filha e do machismo que o faz visitar o quarto da empregada todas as noites em busca de favores sexuais. Denis O’Hare mostra com o olhar o cinismo e a ganância de John Morse – o tio interessado na herança das sobrinhas -, e Kim Dickens e Fiona Shaw – filha e esposa de Andrew, respectivamente – revelam a falta de pulso de quem já abaixou a cabeça para o patriarcado, cada uma a seu modo e com seus respectivos interesses na história. A primeira respeita o pai, mas busca proteger a irmã, enquanto a segunda é leal ao marido, mesmo o ouvindo sair todas as noites de seu lado para estuprar a empregada.

O roteiro, por sua vez, pode decepcionar quem espera um thriller psicológico mais profundo. Ainda que traga elementos de suspense para criar tensão e mostre alguns fantasmas internos da personagem principal, falta um maior aprofundamento dos personagens para que o público realmente possa se envolver com a história e entender melhor como funciona a mente de cada um. O mesmo vale para o romance de Lizzie e Bridget: apesar da certa evolução com as aulas de leitura da patroa com a empregada e, depois, as trocas de cartas, tudo parece rápido demais. Não dá para se afeiçoar tanto as duas para – de acordo com a proposta da adaptação – ser possível ver a personagem de Kristen Stewart como uma das principais motivações para o assassinato do pai e da madrasta.

No entanto, as atuações são tão gigantes – especialmente a de Sevigny e Stewart no momento do assassinato – que conseguem tornar o filme mais relevante do que ele realmente é. A não-fetichização ao mostrar o relacionamento entre duas mulheres também é outro ponto positivo, já que este é um erro muito comum em algumas produções que se propõem a abordar esta temática. Mas o ponto alto é, sem dúvidas, a crítica ao machismo. Por mais que trate de uma época totalmente diferente, ela faz com que o filme se torne atual e levante questionamentos sobre até que ponto um homem pode ir por se achar proprietário de uma mulher – seja ela filha, subordinada ou esposa. E o mais triste é pensar que, embora a Era Vitoriana tenha passado, muitas mulheres ainda estão presas em muros reais e imaginários sem saber o que fazer para tomarem as rédeas de sua vida. Fins não justificam os meios; mas, no caso desta adaptação, quem pode julgar Lizzie?

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No filme de Craig Macneill, a empregada que também estava na casa no dia do assassinato real em 1892, Bridget Sullivan, não é apenas uma mera coadjuvante na história: ela vive um amor proibido com Lizzie e essa paixão, impedida pelo pai, teria sido uma das principais motivações para o trágico acontecimento. Embora nada tenha a ver com as mortes em si, até por ter se dado depois, o plot do relacionamento com outra mulher provavelmente foi inspirado no boato de que Borden teve um caso com a atriz Nance O’Neil em 1904, que teria lhe causado grandes problemas emocionais depois do término em 1906. No entanto, verdade ou não, ter criado um romance entre a criada e a patroa foi uma boa sacada no roteiro por só entregar mais camadas para uma personagem que já é intrigante o suficiente.

Não poderia ter tido uma escolha melhor que Chloë Sevigny para dar vida à Lizzie. Dos momentos de crise da personagem às horas em que ela desafiava o pai (Jamey Sheridan) ou olhava para Bridget (Kristen Stewart) com amor, ela mostra uma atuação convincente e digna de aplausos. O mesmo pode-se dizer de Stewart, que aqui tem como maior trunfo o olhar – que transita muito bem do sofrimento de uma empregada que sofre abusos do patrão ao desejo ardente por uma das patroas. Por mais que muitos ainda torçam o nariz para suas atuações (ainda pela fase hater da saga Twilight), é inegável o quanto a atriz evoluiu e já pode estar entre os nomes mais relevantes de estrelas de sua geração. Ainda que este não seja o seu melhor trabalho (muito pelo brilho em cena de Sevigny e por comparações com Runaways – Garotas do Rock e Personal Shopper), ela definitivamente não decepciona.

Contando com um elenco de peso, os demais personagens também são representados com ótimas atuações. Jamey Sheridan, que vive Andrew Borden, consegue fazer o público sentir ódio do autoritarismo com que ele trata a filha e do machismo que o faz visitar o quarto da empregada todas as noites em busca de favores sexuais. Denis O’Hare mostra com o olhar o cinismo e a ganância de John Morse – o tio interessado na herança das sobrinhas -, e Kim Dickens e Fiona Shaw – filha e esposa de Andrew, respectivamente – revelam a falta de pulso de quem já abaixou a cabeça para o patriarcado, cada uma a seu modo e com seus respectivos interesses na história. A primeira respeita o pai, mas busca proteger a irmã, enquanto a segunda é leal ao marido, mesmo o ouvindo sair todas as noites de seu lado para estuprar a empregada.

O roteiro, por sua vez, pode decepcionar quem espera um thriller psicológico mais profundo. Ainda que traga elementos de suspense para criar tensão e mostre alguns fantasmas internos da personagem principal, falta um maior aprofundamento dos personagens para que o público realmente possa se envolver com a história e entender melhor como funciona a mente de cada um. O mesmo vale para o romance de Lizzie e Bridget: apesar da certa evolução com as aulas de leitura da patroa com a empregada e, depois, as trocas de cartas, tudo parece rápido demais. Não dá para se afeiçoar tanto as duas para – de acordo com a proposta da adaptação – ser possível ver a personagem de Kristen Stewart como uma das principais motivações para o assassinato do pai e da madrasta.

No entanto, as atuações são tão gigantes – especialmente a de Sevigny e Stewart no momento do assassinato – que conseguem tornar o filme mais relevante do que ele realmente é. A não-fetichização ao mostrar o relacionamento entre duas mulheres também é outro ponto positivo, já que este é um erro muito comum em algumas produções que se propõem a abordar esta temática. Mas o ponto alto é, sem dúvidas, a crítica ao machismo. Por mais que trate de uma época totalmente diferente, ela faz com que o filme se torne atual e levante questionamentos sobre até que ponto um homem pode ir por se achar proprietário de uma mulher – seja ela filha, subordinada ou esposa. E o mais triste é pensar que, embora a Era Vitoriana tenha passado, muitas mulheres ainda estão presas em muros reais e imaginários sem saber o que fazer para tomarem as rédeas de sua vida. Fins não justificam os meios; mas, no caso desta adaptação, quem pode julgar Lizzie?

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