Em 1993, as manchetes mundiais divulgavam, vorazmente, a intrigante história de uma jovem que cortara fora o órgão genital de seu esposo. O assunto, que dominou a imprensa ao longo de todo o ano, trazia o bizarro como seu fator instigante, mas escondia uma dolorosa experiência de sofrimento contínuo ao longo de quatro anos. Lorena Bobbitt, jovem de corpo esguio e delicado, cabelos negros ondulados e olhar baixo, decretara o fim de uma sucessão compulsiva de abusos sexuais, psicológicos, físicos e emocionais, sofridos dentro de casa. Atordoada pela mais recente invasão ao seu corpo, ela pegou uma faca na cozinha e, sem ponderar sobre o que estava prestes a acontecer, rancou fora o membro de John Wayne. E 25 anos após essa trágica história, ela volta, mais corajosa do que nunca, para recontar um capítulo de sua vida que transformou sua jornada. Lorena, produzido por Jordan Peele, corrige os erros cometidos pela mídia nos anos 90 e relata, verdadeiramente, o ângulo certo desse enxerto da história contemporânea norte-americana.
Enfrentando o passado como alguém que o teme menos e entende seu alcance social global, Lorena Gallo reconstrói cada uma das etapas daquilo que vivera em um casamento abusivo. Sob um denso e extenso trabalho investigativo, liderado pelo sensível e talentoso documentarista Joshua Rofé, o documentário direciona os holofotes para o problema real, brutalmente ignorado há 25 anos. Muito mais do que falar sobre quem perdeu o que, como perdeu e onde o membro foi parar, a produção faz um serviço de utilidade pública, ilustrando clinicamente a extensão de abusos que Lorena viveu. Não sendo parcial em nenhuma de suas vertentes de abordagem, a série documental dividida em quatro partes recorre a todas as fontes que – de alguma forma – fizeram parte deste capítulo.
Entre médicos, cirurgiões, enfermeiros, socorristas, advogados e até mesmo membros do júri do caso, a produção original da Amazon Prime Video vai a todas as esferas, não deixando passar uma fonte sequer. Recorrendo até mesmo ao próprio John Wayne, a série traz uma percepção mais vasta e ampla do caso, montando um denso mapa de conexões onde nomes, locais e circunstâncias são interligadas. Indo também para além do momentum em sim, Lorena mostra o aftermath dos personagens principais, que ainda serve como argumento confirmativo de seus respectivos caráter e comportamentos. Trazendo um debate poderoso sobre o trabalho feito pela mídia à época, a docuseries é também uma rica fonte de pesquisa sobre um período transformador para a imprensa mundial. Foi com o caso de Lorena Bobbit e John Wayne que os veículos iniciaram os ciclos de cobertura 24 horas, hoje um estilo jornalístico tão comum nas emissoras do mundo todo.
Mas muito mais do que refletir sobre o impacto da cobertura midiática, Lorena aborda o teor desse trabalho jornalístico. Alfinetando a falta de responsabilidade social das publicações feitas, o documentário faz duras críticas ao espetáculo circense que a trágica história da vítima se tornou por meio dos jornalistas e seus respectivos veículos. Transformando tudo em uma piada de mal gosto, profissionais da comunicação foram as engrenagens que impulsionaram a humilhação que assombrou a vida de Lorena Gallo durante todo o processo judicial. Tendo que se provar dentro e fora dos tribunais, ela foi vista como uma espécie de algoz sem coração, que feriu a integridade de um homem, o seu “bem mais precioso”. Em contrapartida, Wayne foi visto como um tipo de donzela em perigo, se tornando uma sensação hollywoodiana, com excessivas aparições em programas de TV, rádio, jornais e revistas, se auto promovendo a partir dos abusos que causou em sua esposa.
Foi nesse complexo contexto que a cultura de pseudo celebridades também emergiu com força, fazendo de pessoas – até então – comuns, em sensações midiáticas, monetizadas em cansativos programas em loop que esgotavam a temática a fim de aumentar suas audiências. Analisando esse apetite pelo bizarro, Lorena chama a atenção do aclamado programa Saturday Night Live, que trouxe gente como Mike Meyers e Adam Sandler em sketches cômicos que faziam escárnio do caso. Defensores do #MeToo, como o comediante e apresentador de talk show David Letterman, são expostos pela piada que fizeram dos terríveis abusos sofridos pela verdadeira vítima. O radialista Howard Stern – quem mais promoveu John Wayne – é escrachado em tela por seu comportamento ridículo.
Nomes e mais nomes de figuras públicas estampam o hall vergonhoso que prolongou o assédio de Lorena Bobbitt. E sabendo das consequências que as devidas citações podem reverberar na indústria do entretenimento, a série documental não poupa nossos olhos e ouvidos, proporcionando uma experiência dolorosa diante das telas, mas necessária. Ainda pode parecer óbvio externar, mas precisamos falar sobre o abuso sexual. E é pela falta de tato com a temática que ainda lidamos com notícias e revelações dolorosas de vítimas maltratadas por conta do corpo com o qual nasceram.
Fazendo justiça à vítima, que há 25 anos fora tratada e condenada pela opinião pública – a fim de cumprir o papel denunciante de um jornalismo investigativo fajuto, que escondia um sensacionalismo barato e cafona, Lorena expõe as consequências que a desinformação é capaz de gerar, quando se trata de vidas dilaceradas por traumas. Honesto, cru e bem produzido, a série documental consegue colocar um ponto final no passado, escrevendo uma nova história para o presente e futuro, instigando conversas mais francas e profundas sobre como podemos proteger as vítimas de abuso sexual, à medida que evitamos novos casos.