sexta-feira, maio 10, 2024

Crítica | ‘Luna Nera’ traz incríveis mensagens de empoderamento, mas peca na credibilidade narrativa

Desde que a indústria do entretenimento deu uma guinada surpreendente – primeiro o cinema no começo do século XX e então a televisão a partir de 1950 -, as místicas figuras das bruxas dominaram o imaginário popular e foram transcritas das mais diversas formas para as telonas e telinhas. É claro que essas mágicas criaturas, muitas vezes associadas a algo maligno, já existiam há milênios e até hoje existem, congregadas em clãs wiccanos, por exemplo, ou então em grupos que prezam mais pela bruxaria tradicional. De qualquer forma, o conceito simbológico delas foi arquitetado, desconstruído e virado do avesso com o passar dos anos, protagonizando obras adoradas como ‘As Bruxas de Eastwick’, ‘Abracadabra’ e ‘Convenção das Bruxas’.

Recentemente, contos de terror foram adaptados em macabras e envolventes histórias, como é o caso de ‘A Bruxa’ e ‘Hereditário’ – chegando, finalmente, à nova produção da Netflix que visa retornar ao passado e trazer como foco um grupo de mulheres italianas que se exilaram da sociedade por serem tratadas como demônios. Na verdade, esse grupo era formado por bruxas, desafiando o patriarcado renascentista fruto de um retrógrado e conservador pensamento e, por conta disso, condenadas às mais diversas formas de tortura e execução. Apesar das claras e empoderadas mensagens promovidas pelo show, ‘Luna Nera’ não explora o seu incrível potencial, valendo-se mais de formulaicos acontecimentos em vez de almejar a algo original.

A primeira temporada já nos chama a atenção por ser comandada inteiramente por mulheres – além de ser baseada na trilogia ‘Le Città Perdute’ (‘A Cidade Perdida’), de Tiziana Triana. Logo no primeiro episódio, nos deparamos com uma atmosfera densa, marcada por estilos que remontam ao clássico expressionismo alemão, tanto pela constante névoa que cerca as protagonistas quanto pelo inteligente jogo de luz e sombra que tenta ao máximo nos manter interessados para passarmos ao próximo episódio. No centro disso tudo, existe Ade (Antonia Fotaras), uma jovem que auxilia sua avó como parteira – isso é, até as duas serem acusadas de matarem o recém-nascido dos Benandanti. A partir daí, Ade acaba fugindo de sua casa com o irmão, Valente (Giada Gagliardi), e segue rigorosamente as instruções da avó para se encontrar com um grupo de feiticeiras extremamente poderoso.

Diferente do que poderíamos imaginar, a série nutre-se de uma vida própria: enquanto alguns elementos são resgatados da icônica franquia ‘As Brumas de Avalon’, as showrunners tomam cuidado para que as escolhas artísticas e narrativas não sejam apenas um simulacro do cenário inglês; não é à toa, pois, que elas optem por se centrar nas construções romanas que ainda permanecem revoltas de mistério. Eventualmente, o próprio cenário grita com uma história que não pode ser apagada, e resolve seguir um caminho que se aproxima de ‘O Nome da Rosa’, mergulhando numa visceralidade que poderia ser bem melhor explorada.

Apesar de Ade ser a protagonista, são as outras personas que roubam o foco, mesmo residindo em arquétipos bastante conhecidos de arcos coming-of-age. Aliás, talvez seja esse paralelo significativo que a produção faz com tantos enredos familiares que a torne tão saudosista para o público, convidando-os a algo que já conhecem (mas não da mesma forma que ouviram falar): de um lado, temos a líder do clã, Tebe (Manuela Mandracchia), que livra-se das amarras sexistas de outra vida para se juntar à humana Leptis (Lucrezia Guidone). De outro, Janara (Federica Fracassi) serve como braço-direito de Tebe, e Persepolis (Adalgisa Manfrida) é o escape cômico e uma das confidentes de Ade.

É claro que a solidez dessa irmandade não poderia ser plena: como mencionado, seu principal inimigo insurge no rosto dos Benandanti, cuja perspectiva sanguinária é canalizada principalmente por Sante (Giandomenico Cupaiulo), o qual recruta vários jovens religiosos para caçar as “aberrações satânicas” que resolveram tornar suas costas para seu deus cristão. Porém, um deles, conhecido como Pietro (Giorgio Belli), que se formou nas artes médicas em Roma, renega esse fervor irracional e se apaixona por Ade (não acreditando que ela possa ser bruxa). Com todas essas intrincadas tramas, era de se esperar que os seis longos episódios ao menos culminasse em críveis transformações de personalidade – mas isso só ocorre com poucos protagonistas.

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‘Luna Nera’ se vale muito de sua estética incrível para mascarar alguns erros amadores, dentre eles a inserção de reviravoltas inexplicáveis que nem ao menos foram premeditadas por algum elemento do roteiro. Valente, por exemplo, não é um menino, e sim a menina-chave que nasceria para proteger as bruxas e que foi enfeitiçada pela própria mãe para que não corresse perigo; Marzio Oreggi (Roberto De Francesco), a eminência suprema da igreja local, é, na verdade, um feiticeiro banido de seu clã que se voltou contra a própria raça e que é, ao que tudo indica, pai biológico de Ade (ou um adorador de Satã que deseja trazer ainda mais caos àquele mundo decadente); e, para terminar, Pietro acaba se voltando contra seus próprios princípios e declara uma guerra santa logo depois que Ade assassina seu pai em autodefesa.

No final das contas, as mensagens positivas sobre sororidade e autoaceitação são ofuscadas por reticências gritantes e por uma necessidade indescritível de chocar o público e levá-lo a uma catarse que nunca se consolida. Apesar dos ganchos para a próxima temporada, a série tangencia um ciclo sem fim que, sem sombra de dúvidas, deverá ser lapidado ou destrinchado com urgência.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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