Há muitas partes da História do Brasil que desconhecemos. E há tantas outras que jamais conheceremos, devido ao processo de colonização que ocultou, destruiu, distorceu e apagou para sempre nomes, culturas, memórias e eventos que ajudaram, direta ou indiretamente, a formar o lugar que hoje chamamos de Brasil. Felizmente, nessa última década temos vistos esforços contundentes em dar visibilidade a histórias desconhecidas e/ou minimizadas à população – episódios cujas verdadeiras importâncias e grandezas não foram dadas com o devido valor e que vêm sendo transformadas em peças, livros e filmes, numa tentativa de ilustrar em arte as lacunas que faltam de nossa História esburacada. E como uma fundamental nova peça dessa grande construção, teve exibição de gala no Festival do Rio 2024, na Mostra de São Paulo e no Encontro de Cinema Zózimo Bubul, o filme brasileiro ‘Malês’, cuja estreia em circuito nacional ainda está por ser definida.
O mercado de escravização e de tráfico de pessoas africanas para o Brasil continua intenso. Enquanto a elite branca manda e desmanda na casa grande na cidade de Salvador, na Bahia, dezenas de pessoas negras escravizadas começam a se organizar para construir uma casa de reza, onde pudessem ter a liberdade de praticar a religião islâmica. Os ‘Malês’, como eram conhecidos os praticantes dessa religião que vieram de África, além de estudar e rezar juntos, passaram também a se organizar financeiramente para, juntos, conseguirem comprar a alforria de irmãos ainda escravizados. Mas quando o líder Licutam (Antonio Pitanga) é preso, os ‘Malês’ – encabeçados por Ahuna (Rodrigo de Odé), Manoel Calafate (Bukassa Kabengele), Vitório Sule (Heraldo de Deus), Luís Sanim (Thiago Justino) e Dassalu (Rocco Pitanga) – se reúnem para, de uma vez por todas, não apenas para libertar Licutam, mas libertar a todos os escravizados da província da Bahia numa ação organizada que mais tarde seria conhecida na História como a Revolta dos Malês.
‘Malês’ é uma produção enorme em muitos sentidos – seja porque levou dez anos para ficar pronta, seja pelo talento de seu elenco (que também conta com nomes como Camila Pitanga, Patrícia Pillar e da ótima Indira Nascimento), seja por ser uma superprodução, gravada em Salvador, Cachoeira e Maricá. É também o projeto que o audiovisual brasileiro precisava para contar de maneira acertada este que é um dos principais e mais importantes eventos da História do país.
Considerando que a maioria dos brasileiros desconhece o episódio e/ou teve contato com este evento como sendo apenas um parágrafo no livro da escola, ‘Malês’ é um filme profundo, intenso e com muita, muita informação. Essa é provavelmente a maior dificuldade da produção, pois ao mesmo tempo em que abraça tudo que se sabe do levante (e, nesse ponto, aqueles que conhecem a história reconhecerão eventos e personagens), também precisa apresentá-lo ao grande público desconhece os acontecimentos – e, nesse ponto, reside a sobrecarga de informações, com muitas línguas, culturas, sotaques, nomes, lugares os quais não fazem parte do cotidiano do brasileiro comum. É possível que legendas para a maioria dos diálogos favorecessem a melhor compreensão não só do que se é dito, mas da proximidade desses elementos culturais com o que hoje conhecemos como língua brasileira, especialmente porque ‘Malês’ se tornará uma importante ferramenta de ensino da história em escolas futuramente.
O roteiro tecido por Manuela Dias ilumina todos os elementos e personagens de que se conhece do levante, criando ainda alguns outros para conferir uma atmosfera dramatúrgica aos eventos. A primeira cena já é com o próprio Licutam (Pitanga), o que sinaliza, de primeira, a importância que é ter esse filme no comando de alguém tão sábio do cinema brasileiro. Dali o espectador retorna à África, para então vir para a Salvador de 1835, e vamos acompanhando diversos núcleos de malês e de aliados, o que amplia o longa em muitos núcleos, tal qual uma novela. E é preciso avisar: há cenas de violência evidente que vão causar desconforto no espectador.
É palpável a delicadeza e a firmeza de Antonio Pitanga na direção de ‘Malês’, e mais palpável ainda o profundo respeito que o elenco tem em sua presença, o que torna o filme ainda mais especial. Sem dúvidas, ‘Malês’ era um filme que precisava ser feito, e é extremamente correto que o projeto tenha sido comandado por Antonio Pitanga e vivido por esse elenco que ouviu o chamado ancestral para dar vida e voz a esses bravos guerreiros. Intenso, ‘Malês’ é um filme para o Brasil ver e nunca mais esquecer daqueles que lutaram pela liberdade.