Longe dos grandes centros urbanos – onde a realidade caótica e a insegurança já são avassaladoras na vida de qualquer um –, mais para dentro do nosso país, existem realidades onde a câmera não chega, uma realidade que não vira notícia, que não vira estatística, e, portanto, não existe oficialmente. Múltiplas violências, inacessibilidade a recursos, falta do mínimo para subsistir – são muitos os recantos desse território cujos dramas não são retratados no audiovisual. Um pouco na tentativa de jogar luz sobre um problema crônico que assola o interior selvático desse país, o longa ‘Manas’, produzido pela Inquietude com coprodução do Canal Brasil, Globo Filmes, Pródigo e Fado Filmes, teve suas primeiras sessões de exibição no Brasil durante o Festival do Rio 2024.
Marcielle (a estreante Jamilli Correa) é a segunda filha mais velha da família, após sua irmã que deixou a cidade e foi morar no sul. Ela tem por volta de 13 anos e ainda brinca de boneca com sua irmã menor, na humilde casa ribeirinha às margens do rio em Marajó, no Pará. Quando, certo dia, a corda de sua rede arrebenta, em vez de deixá-la dormir no chão seu pai, Marcílio (Rômulo Braga, de ‘Carvão’), fala que a partir daquele momento Cielle irá dormir com ele, na cama, ao passo que a mãe, Danielle (Fátima Macedo, de ‘O Clube dos Canibais’), continuará dormindo na rede dela. Começa, assim, um ciclo de abusos à jovem Cielle, que, para fugir da violência que sofre dentro de casa, se dispõe até mesmo a subir nas balsas dos visitantes e se oferecer em troca de comida e de uma oportunidade de fugir daquela realidade.
‘Manas’ poderia ser baseado em eventos reais, em muitos eventos reais, mas é ficção. E esse é o grande trunfo da diretora estreante em longa-metragem de ficção Marianna Brennand: fazer uso do audiovisual para contar uma história comum a centenas de garotas e meninas que passaram e ainda passam por esse tipo de situação, não só no Marajó mas, principalmente, em toda a região do norte do país, onde o mero transporte de mantimentos requer logística.
Outro grande ponto fundamental no roteiro de Camila Agustini, Carolina Benevides, Marianna Brennand, Marcelo Grabowsky, Antonia Pellegrino e Felipe Sholl é construir as cenas de abuso sem expor as crianças do elenco a situações desconfortáveis que pudessem gerar traumas na vida real. Assim, as cenas em que qualquer tipo de violência acontece são subliminares, em off, de modo que o espectador consegue entender, mas não precisa ver.
Com elenco que conta com Dira Paes em participação especial e nomes como Rômulo Braga, numa corajosa interpretação de um pai abusivo, o sol em ‘Manas’ é mesmo a jovem Jamilli Correa, que tem aquele frescor juvenil em florescimento da puberdade, mas com traços de coragem que, sabemos, é naqueles primeiros anos adolescentes que surgem nas mulheres. Com muita competência, Jamilli assume o protagonismo de uma história terrível e que não é só de Cielle, mas de muitas meninas e garotas do país. Não à toa, Jamilli Correa levou o Prêmio Especial do Júri no Festival do Rio.
Corajoso, singelo, real e belamente fotografado, ‘Manas’ é um filmaço com um elenco afiado que não teve receio de expor uma ferida crônica do interior nortista do país. Imperdível, está em cartaz também na Mostra de Cinema de São Paulo.