sexta-feira , 15 novembro , 2024

Crítica | Mank – David Fincher e a Netflix desmascaram Cidadão Kane

A Verdade nos Bastidores

Dando continuidade a seu trabalho junto a cineastas consagrados, a Netflix lançou ontem em sua plataforma o novo filme do diretor duas vezes indicado ao Oscar, David Fincher. E o filme promete emplacar forte na vindoura temporada de prêmios do cinema. Seguindo de perto as obras de “arte” da casa, vide Roma (2018, de Alfonso Cuarón) e O Irlandês (2019, de Martin Scorsese), Mank não é um filme de fácil acesso, sendo indicado para os fãs de cinema raiz.

Mank faz parte do subgênero “filme sobre filmes”, que terminam sempre mais interessantes/indicados para os aficionados pelo assunto, profissionais da área, cinéfilos e estudantes da história do cinema – aqui, em especial da era de ouro de Hollywood, anos 1930 e 1940. Mas o novo longa de Fincher não é apenas isso, e em seus próprios bastidores se torna uma carta de amor do cineasta e seu projeto mais pessoal. Tudo isso porque o longa foi escrito pelo pai do diretor, Jack Fincher (falecido em 2003), em seu único trabalho para o cinema. Apesar disso, Jack Fincher era um famoso escritor e ensaísta, tendo inúmeros textos, artigos e ensaios publicados em veículos renomados, vide Readers Digest, Saturday Review e The Smithsonian, por exemplo. Jack, inclusive, escreveu uma biografia sobre Howard Hughes, que quase foi transformado no filme de Martin Scorsese, O Aviador (2004) – terminando por ser escolhido o roteiro de John Logan para a obra.



Sua experiência com as palavras são a explicação da verborragia incessante de Mank – um filme que não dá descanso em suas informações, monólogos e diálogos. Todos riquíssimos, devo adicionar. O que faz do longa uma viagem a ser saboreada repetidas vezes, até conseguirmos contemplar e assimilar ao menos uma parte de tudo que tem a oferecer. É impossível captar apenas em um primeiro contato. Sabemos que estamos diante de algo grandioso, mas seus caminhos escondidos tornam tudo ainda mais raro.

Como muito anunciado, Mank é uma empreitada pelos bastidores de um dos maiores clássicos e obras-primas da sétima arte, ainda considerado por muitos o melhor filme de todos os tempos, Cidadão Kane (1941): indicado a nove Oscar, incluindo melhor filme, e vencedor de melhor roteiro. E aqui adentramos justamente na seara que é o tema do novo longa. Ou devemos dizer, um dos temas. David Fincher, ao lado de seu pai, se aventura a desmistificar a genialidade de um então jovem Orson Welles, na época um garoto de 25 anos – diretor e protagonista de Cidadão Kane, e muito creditado como autor da história. Há tempos se debate o crédito de Welles no texto da produção, mas os Fincher batem o martelo e chegam para afirmar que… não, o cineasta não teve o peso alardeado nesta história.

Para a tarefa de escrever o grosso de Cidadão Kane entrou em cena Herman J. Mankiewicz, vulgo Mank, um dos roteiristas mais influentes de Hollywood na época, tendo no currículo textos em trabalhos como Avalanche (1928) e Que Mundo Maravilhoso (1939), e de uma segunda indicação ao Oscar por e Ídolo, Herói e Amante (1942) –  além da vitória da estatueta pelo citado Kane. Era Mank, vivido no filme de Fincher ilustremente pelo vencedor do Oscar Gary Oldman (garantido de receber uma segunda indicação pelo retrato rechonchudo e deliciosamente bêbado durante quase toda a projeção), quem frequentava as altas rodas da sociedade. As quais envolviam o mega empresário dono do estúdio MGM Louis B. Mayer (Arliss Howard) e o magnata da mídia William Randolph Hearst (Charles Dance) – no qual o personagem de Kane foi baseado.

Mank afirma também que foi uma disputa pelo coração da atriz Marion Davis – uma das grandes da era de ouro – que levou o roteirista a criar esta rivalidade com o barão da mídia, descortinando sua essência nas telas. Marion seria a sua “Rosebud” verdadeira. No longa, a atriz é vivida pela jovem Amanda Seyfried em sua melhor performance em um filme, que pode igualmente render-lhe lembranças na temporada de prêmios. Segundo relatos, David Fincher “baixou” o Stanley Kubrick e exauriu seus atores, em especial Oldman e Seyfried, exigindo por vezes centenas de tomadas da mesma cena. O cineasta queria perfeição, nesta que é sua obra mais próxima do peito e que os especialistas já estão chamando de seu melhor trabalho. Tal comprometimento é sempre visto com bons olhos pelos membros votantes da Academia. Embora, como dito, Mank não é um filme recomendado para todos os gostos, e pode resultar num difícil consumo.

Fincher fez questão de filmar num glorioso preto e branco, e inserir gracejos que dão todo o sentimento de estarmos assistindo à uma produção saída da mesma época em que a história se passa, como por exemplo, as falhas nas impressões dos rolos de filme, e nas mudanças de cenas. Até mesmo os usuais colaboradores Trent Reznor e Atticus Ross foram instruídos a criar a trilha sonora utilizando apenas os instrumentos musicais que estariam disponíveis na época, ou seja, na virada da década de 30 para 40. Se isso não é perfeccionismo de gênio… Como resultado temos um filme que exala beleza, textura e soa verdadeiramente (mesmo com o som mono exigido) genuíno.

Como dito, existe muito a encontrarmos em Mank, e o filme ainda discute visões políticas, inserindo paralelos atuais na disputa de republicanos e democratas, e até mesmo socialismo versus comunismo. Mank, uma figura altamente condenável aos olhos públicos, vivia de sua própria maneira sendo fiel a seus ideais, mesmo sendo dono de tendências autodestrutivas que terminaram por finalmente lhe custar a vida aos 55 anos de idade. Conseguimos comprar até mesmo a ideia de Oldman, com mais de 60, estar interpretando alguém na casa dos 40.

Com Mank, David Fincher joga os holofotes numa figura que sempre ficou à sombra, negado de seu maior feito. O reconhecimento e ode a um artista que originou um dos grandes clãs de Hollywood. Ao exorcizar o assunto, Fincher igualmente lava a alma de sua própria família, ao finalmente concretizar um sonho de seu pai em ter um de seus roteiros filmados. Fosse apenas por isso, Mank já seria um dos filmes mais valiosos de 2020. Mas felizmente os envolvidos entregam ainda uma das obras mais luxuosas desta temporada que, não apenas reafirma David Fincher como um dos melhores cineastas em atividade, como também o poder de liberdade concedido a seus diretores pela antes marginalizada Netflix – definitivamente já dentro do círculo interno de afeto da indústria do cinema.

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Mank faz parte do subgênero “filme sobre filmes”, que terminam sempre mais interessantes/indicados para os aficionados pelo assunto, profissionais da área, cinéfilos e estudantes da história do cinema – aqui, em especial da era de ouro de Hollywood, anos 1930 e 1940. Mas o novo longa de Fincher não é apenas isso, e em seus próprios bastidores se torna uma carta de amor do cineasta e seu projeto mais pessoal. Tudo isso porque o longa foi escrito pelo pai do diretor, Jack Fincher (falecido em 2003), em seu único trabalho para o cinema. Apesar disso, Jack Fincher era um famoso escritor e ensaísta, tendo inúmeros textos, artigos e ensaios publicados em veículos renomados, vide Readers Digest, Saturday Review e The Smithsonian, por exemplo. Jack, inclusive, escreveu uma biografia sobre Howard Hughes, que quase foi transformado no filme de Martin Scorsese, O Aviador (2004) – terminando por ser escolhido o roteiro de John Logan para a obra.

Sua experiência com as palavras são a explicação da verborragia incessante de Mank – um filme que não dá descanso em suas informações, monólogos e diálogos. Todos riquíssimos, devo adicionar. O que faz do longa uma viagem a ser saboreada repetidas vezes, até conseguirmos contemplar e assimilar ao menos uma parte de tudo que tem a oferecer. É impossível captar apenas em um primeiro contato. Sabemos que estamos diante de algo grandioso, mas seus caminhos escondidos tornam tudo ainda mais raro.

Como muito anunciado, Mank é uma empreitada pelos bastidores de um dos maiores clássicos e obras-primas da sétima arte, ainda considerado por muitos o melhor filme de todos os tempos, Cidadão Kane (1941): indicado a nove Oscar, incluindo melhor filme, e vencedor de melhor roteiro. E aqui adentramos justamente na seara que é o tema do novo longa. Ou devemos dizer, um dos temas. David Fincher, ao lado de seu pai, se aventura a desmistificar a genialidade de um então jovem Orson Welles, na época um garoto de 25 anos – diretor e protagonista de Cidadão Kane, e muito creditado como autor da história. Há tempos se debate o crédito de Welles no texto da produção, mas os Fincher batem o martelo e chegam para afirmar que… não, o cineasta não teve o peso alardeado nesta história.

Para a tarefa de escrever o grosso de Cidadão Kane entrou em cena Herman J. Mankiewicz, vulgo Mank, um dos roteiristas mais influentes de Hollywood na época, tendo no currículo textos em trabalhos como Avalanche (1928) e Que Mundo Maravilhoso (1939), e de uma segunda indicação ao Oscar por e Ídolo, Herói e Amante (1942) –  além da vitória da estatueta pelo citado Kane. Era Mank, vivido no filme de Fincher ilustremente pelo vencedor do Oscar Gary Oldman (garantido de receber uma segunda indicação pelo retrato rechonchudo e deliciosamente bêbado durante quase toda a projeção), quem frequentava as altas rodas da sociedade. As quais envolviam o mega empresário dono do estúdio MGM Louis B. Mayer (Arliss Howard) e o magnata da mídia William Randolph Hearst (Charles Dance) – no qual o personagem de Kane foi baseado.

Mank afirma também que foi uma disputa pelo coração da atriz Marion Davis – uma das grandes da era de ouro – que levou o roteirista a criar esta rivalidade com o barão da mídia, descortinando sua essência nas telas. Marion seria a sua “Rosebud” verdadeira. No longa, a atriz é vivida pela jovem Amanda Seyfried em sua melhor performance em um filme, que pode igualmente render-lhe lembranças na temporada de prêmios. Segundo relatos, David Fincher “baixou” o Stanley Kubrick e exauriu seus atores, em especial Oldman e Seyfried, exigindo por vezes centenas de tomadas da mesma cena. O cineasta queria perfeição, nesta que é sua obra mais próxima do peito e que os especialistas já estão chamando de seu melhor trabalho. Tal comprometimento é sempre visto com bons olhos pelos membros votantes da Academia. Embora, como dito, Mank não é um filme recomendado para todos os gostos, e pode resultar num difícil consumo.

Fincher fez questão de filmar num glorioso preto e branco, e inserir gracejos que dão todo o sentimento de estarmos assistindo à uma produção saída da mesma época em que a história se passa, como por exemplo, as falhas nas impressões dos rolos de filme, e nas mudanças de cenas. Até mesmo os usuais colaboradores Trent Reznor e Atticus Ross foram instruídos a criar a trilha sonora utilizando apenas os instrumentos musicais que estariam disponíveis na época, ou seja, na virada da década de 30 para 40. Se isso não é perfeccionismo de gênio… Como resultado temos um filme que exala beleza, textura e soa verdadeiramente (mesmo com o som mono exigido) genuíno.

Como dito, existe muito a encontrarmos em Mank, e o filme ainda discute visões políticas, inserindo paralelos atuais na disputa de republicanos e democratas, e até mesmo socialismo versus comunismo. Mank, uma figura altamente condenável aos olhos públicos, vivia de sua própria maneira sendo fiel a seus ideais, mesmo sendo dono de tendências autodestrutivas que terminaram por finalmente lhe custar a vida aos 55 anos de idade. Conseguimos comprar até mesmo a ideia de Oldman, com mais de 60, estar interpretando alguém na casa dos 40.

Com Mank, David Fincher joga os holofotes numa figura que sempre ficou à sombra, negado de seu maior feito. O reconhecimento e ode a um artista que originou um dos grandes clãs de Hollywood. Ao exorcizar o assunto, Fincher igualmente lava a alma de sua própria família, ao finalmente concretizar um sonho de seu pai em ter um de seus roteiros filmados. Fosse apenas por isso, Mank já seria um dos filmes mais valiosos de 2020. Mas felizmente os envolvidos entregam ainda uma das obras mais luxuosas desta temporada que, não apenas reafirma David Fincher como um dos melhores cineastas em atividade, como também o poder de liberdade concedido a seus diretores pela antes marginalizada Netflix – definitivamente já dentro do círculo interno de afeto da indústria do cinema.

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