Mesmo anos depois de seu trágico falecimento, Amy Winehouse permanece como um dos maiores nomes do cenário fonográfico. Através de uma lírica pungente e uma voz única, Amy tornou-se um dos estandartes da música jazz, soul e blues no escopo mainstream contemporâneo e continua viva na memória popular. Não é surpresa que o documentário da Netflix que carrega seu nome tenha sido recebido com aclame generalizado, conquistando uma merecida estatueta do Oscar e nos relembrando do impacto que a cantora e compositora teve com pouquíssimos anos de carreira e dois sólidos álbuns de estúdio que imediatamente conquistaram uma legião de fãs ao redor do planeta.
Agora, somos convidados a revisitar o conturbado arco de Winehouse com a antecipada cinebiografia ‘Back to Black’. Dirigida por Sam Taylor-Johnson, a produção procura explorar a transição da performer para o estrelato mundial, nos guiando até os momentos que antecederam sua morte – e, é claro, esquadrinhando as polêmicas em que se envolveu e que atraíram olhares maldosos dos paparazzi e de uma mídia que não tinham quaisquer interesses em protegê-la ou em trazer a verdade à tona, preferindo pintá-la como uma mulher louca e rendida às drogas e ao álcool. E, concretizando o que todos temiam, o longa-metragem é frustrante em sua estrutura estética e criativa, bem como redutivo a ponto de desumanizá-la mais do que já conseguiram em um passado não muito distante.
A obra é estrelada por Marisa Abela como Amy em uma atuação esplendorosa e que emerge como o maior ponto positivo do projeto. Diferente do que havíamos visto no trailer, Abela não está caricata em momento algum e, apesar do árduo trabalho em encarnar os trejeitos de uma artista idiossincrática em cada um de seus lados, ela cumpre a missão com êxito inesperado e que revela uma paixão incondicional por Winehouse – reiterada por um comprometimento que insurge em cada cadência vocal, cada crispar de lábios e cada passo dado. Devo dizer que a atriz poderia, inclusive, conquistar uma indicação ao Oscar caso o projeto tivesse saído em uma época melhor (mas é mais provável que seus esforços sejam ofuscados e subestimados conforme o tempo passa).
É claro, Abela não consegue fazer mágica com o superficial roteiro assinado por Matt Greenhalgh e um recorte tão restritivo que é impossível encontrarmos uma centelha de “novidade”, por assim dizer, em relação ao que já sabíamos sobre Winehouse. O que temos é uma espécie de ficção premeditada que passa longe do que, de fato, aconteceu – e que pinta forças-motrizes de sua queda como heroicas personas que apenas estavam tentando auxiliá-la a escapar de uma espiral autodestrutiva. Porém, considerando que o próprio estate de Amy ficou responsável pela supervisão do longa, era apenas natural que as índoles questionáveis do ex-marido Blake (Jack O’Connell) e do pai Mitch (Eddie Marsan) fossem adornadas com uma intragável e imperdoável comiseração.
Em outras palavras, somos convidados a entender de modo errôneo que Amy foi a única responsável pelo que aconteceu. Desde os primeiros momentos, ela é pintada como uma rebelde jovem que não se importa com ninguém além de si mesma e que não tem quaisquer papas na língua – algo que, sutilmente, tenta passar por uma reversão através da atuação de Abela. Com exceção de breves sequências, como as focadas em seu relacionamento com a avó, Cynthia (Lesley Manville em um dos melhores papéis de sua carreira), a originalidade é varrida para debaixo do tapete e nos dá a sensação de estarmos lendo a coluna de um tabloide cujo principal objetivo é manchar a reputação de seu objeto de estudo.
Para além das claras problemáticas encontradas, Taylor-Johnson segue de perto a fadiga criativa que vem se apoderando das recentes biografias do circuito cinematográfico. Em títulos como ‘Estados Unidos vs. Billie Holiday’, ‘Respect’ ou ‘Meu Nome é Gal’, todas as boas intenções caíram por terra ao apresentarem uma perspectiva engessada de artistas musicais, esquivando-se de incursões ousadas para seguir um manual exaurível de cortes secos, campos e contracampos e, quem sabe, certas superssimetrias ou câmeras na mão para indicar dois estados de espírito completamente diferentes. E algo muito similar ocorre aqui: Amy é condenada a uma insanidade inexplicável que, almejando a uma vulnerabilidade, dá um tiro no pé a um exagero melodramático e novelesco que beira o risível.
‘Back to Black’ só não posa como um completo desastre em virtude do trabalho magnífico e espetacular de Abela, que nos comove desde os primeiros momentos em que aparece em cena. O maior obstáculo enfrentado pelo longa-metragem é sua falta de engajamento com a realidade em prol de um panfletarismo barato e de uma redutiva recontagem dos fatos – além de uma omissão significativa de partes de uma arquitrama que, sem sombra de dúvida, deveria ter sido mencionada. Eventualmente, nota-se o fraco valor de entretenimento da produção – e o gostinho agridoce e decepcionante de uma falta considerável de profundidade e apreço.