A Mulher de Palha
Quando o cineasta M. Night Shyamalan surgiu no mundo da sétima arte com O Sexto Sentido (1999), um barulho comparável ao que Quentin Tarantino havia feito no início de tal década ocorreu para a mesma geração. A diferença é que Shyamalan trabalhava dentro de um gênero específico, sem o uso do humor referencial à cultura pop, e sem a intenção de quebrar os moldes narrativos. Em matéria de prestígio, O Sexto Sentido igualmente emplacou no Oscar, com 6 indicações, incluindo melhor filme e diretor.
Dificilmente vemos um primeiro trabalho de um diretor causar tanto impacto para a cultura cinematográfica como ocorreu com Tarantino e Shyamalan. Mas quando falamos unicamente em terror, a estreia do cineasta Ari Aster foi igualmente impactante. Autoral, Aster tem similaridades com os cineastas citados acima, na forma em que trabalha – ele também escreve seus roteiros e assina a direção. A grande diferença é que Aster faz filmes “desagradáveis” (no bom sentido) demais para atrair todo tipo de público, ficando restrito aos amantes do gênero – coisa que não ocorre com Shyamalan se formos parar para pensar.
Independente disso, Hereditário (2018) se tornou um sucesso elogiadíssimo, abraçado por público e crítica, e que conseguiu a façanha de uma reunião de notas melhores que as de O Sexto Sentido, inclusive, no Rotten Tomatoes. Só não conseguiu mesmo foi quebrar a barreira com membros suficientes da Academia para ser eleito um dos pretendentes ao Oscar. Não foi por falta de tentativa, já que diversos veículos especializados faziam campanha ferrenha pela indicação do filme e da performance arrebatadora de Toni Collette (indicada ao Oscar justamente por sua performance em O Sexto Sentido).
Com um primeiro trabalho tão significativo na sétima arte, mas igualmente entranhado num nicho, Ari Aster não se abalou e no período de um ano já tem outro produto no mercado. Em cartaz nos cinemas brasileiros a partir desta quinta-feira, Midsommer: O Mal Não Espera a Noite é o novo e aguardado trabalho do cineasta. E chega como alívio saber que Aster manteve o nível de excelência em seu repertório como contador das histórias mais perturbadoras do cinema na atualidade. O diretor segue colhendo elementos retirados diretamente de nossos pesadelos e os arranja numa traumática experiência que, novamente, promete não te deixar tão cedo.
Midsommar é melhor que Hereditário? Digamos que é tão bom quanto! A diferença óbvia e muito anunciada é que desta vez Aster resolveu trazer o horror às claras, centrando sua trama num ambiente rural, com muito verde e paisagens belas, tudo ao ar livre e em dias ensolarados e lindos. Daí o subtítulo em português. Ao contrário de Hereditário, um filme sombrio, com uma carga pesada, muito passado à noite dentro de uma casa com um terrível segredo.
Outra diferença – esta jogando contra Midsommar – é a imprevisibilidade do trabalho de estreia do cineasta. Em Hereditário, não sabíamos verdadeiramente qual era a ameaça do filme, até o momento da revelação. Esperávamos certos desenvolvimentos de personagens (que eram vendidos pelo trailer), e como um verdadeiro mágico, Aster nos mostrou algo em sua outra mão, puxando o tapete debaixo de nossos pés. Com Midsommar podemos prever passo a passo para onde o filme irá nos levar, e ele não nos surpreende em sua linearidade narrativa. Isso não quer dizer que o filme não guarde suas inúmeras surpresas. E ele o faz bem.
E se Hereditário tirou elementos de O Bebê de Rosemary (1968) e O Exorcista (1973) para criar seu saboroso prato, adicionando na receita uma tragédia familiar digna de dramalhão mexicano (servido de ótimas atuações de todo o elenco), Midsommar pega emprestado de O Homem de Palha (1973) e O Massacre da Serra Elétrica (1974) para discutir um relacionamento a dois nos tempos modernos, enfiando o dedo em tópicos delicados como abuso passivo-agressivo numa relação amorosa, por exemplo.
Outro aspecto que Midsommar carece é de um elenco de peso. Aqui, por se tratar de um elenco basicamente de novos nomes jovens, não existe o estrondo ensurdecedor de uma Toni Collette. Não que este elenco deixe a desejar, pelo contrário. Em especial a dupla protagonista, o casal vivido por Florence Pugh e Jack Reynor, são pura entrega e comprometimento, dando tudo de si em cenas difíceis até para veteranos. Na trama, Dani (Pugh) e Christian (Reynor) são um casal que vive entre idas e vindas no relacionamento, apesar de se gostarem muito. Quando um fato terrível se abate sobre a família da moça, o sujeito a acolhe. Neste processo de cura, ela termina viajando com ele e seus amigos para uma celebração na Suécia, visitando parentes de um deles (Pelle, papel de Vilhelm Blomgren) numa comunidade hippie.
Assim como em Hereditário, o foco de Midsommer é em seus personagens e em seu drama pessoal. O terror é uma nota de rodapé nos filmes de Aster. Bem, uma nota de rodapé manchada de sangue, da qual não conseguimos desviar o olhar ou evitar. Sim, aqui também temos mortes macabras, cenas pra lá de explícitas, momentos muito chocantes e gráficos, e elementos que são a definição do grotesco. Mas nada apavora mais do que o lado negro do ser humano. Ou melhor, ainda mais quando seus atos distorcidos vêm justificados por uma causa. Hereditário era bruxaria, magia negra. Aqui, são rituais pagãos.
No meio de toda a insanidade, Ari Aster testa seus personagens, e nós também, a plateia, para ver até onde aguentaremos ir nesta espiral de loucura. Todos temos nossos demônios internos e fragilidades, nos filmes do cineasta eles são postos à prova, desafiados além de nosso controle: daí a semelhança com os pesadelos, os quais não temos controle algum. Como resultado, o diretor entrega obras de qualidade indiscutível, brincando muito com a forma, a técnica e a movimentação de sua câmera. É a pura beleza do caos. Como prova de sua eficiência, o prêmio máximo para o cinema de Aster é sabermos que ele foi tão certeiro em sua proposta, que não iremos querer revisitar por um bom tempo (ou quem sabe jamais) estas sensações. Mesmo que seus filmes sejam alguns dos pontos altos do ano no cinema.