Mike Flanagan tornou-se um dos diretores mais respeitados e prolíficos da última década ao reviver o exaurido gênero do terror psicológico com veia artística inegável e incomparável, entregando algumas joias cinematográficas como ‘O Espelho’, ‘Jogo Perigoso’ e, mais recentemente, ‘Doutor Sono’. Entretanto, uma obra em particular chamou a atenção de seus fãs e tomou forma na surpreendente e fantástica ‘A Maldição da Residência Hill’, certamente uma das melhores séries não apenas do expansivo catálogo da Netflix, mas dos últimos tempos, fundindo horror a suspense e a pitadas reluzentes de um drama sobrenatural e familiar que desmistificava as fronteiras entre narrativas e criava um cosmos nada menos que soberbo e envolvente.
Qual foi nossa surpresa quando Flanagan anunciou uma sequência da minissérie, transformando-a em uma antologia sem precedentes e que, talvez, marcaria o início de um universo inteiramente original que seguiria a estrutura do familiar ‘American Horror Story’ – com menos exageros estéticos e caprichos gore. E foi desse modo que surgiu ‘A Maldição da Mansão Bly’: baseada livremente no clássico romance ‘A Outra Volta do Parafuso’, de Henry James, a icônica história (que já ganhou uma tenebrosa adaptação neste ano) foi mais uma vez trazida para o espectro contemporâneo, revitalizando os profundos arcos de almas desafortunadas que habitavam um casarão assombrado. Aqui, Victoria Pedretti insurge como a protagonista Dani, uma jovem estadunidense que deixa sua casa às pressas após uma traumática perda e viaja para o interior de Londres para cuidar de suas crianças órfãs.
A princípio, o novo enredo se assemelha apenas em sua premissa e na obviedade de seu título. Diferente da impactante construção inicial de ‘Residência Hill’, ‘Mansão Bly’ abre como um drama familiar narrado por ninguém menos que Carla Gugino e sua presença vocal inigualável. A onisciência de sua evocativa e necessária personagem é o fio condutor que entrelaça a episódica e arrepiante jornada – e auxilia na densa atmosfera que se espalha como praga pelos capítulos e vem recheada de reviravoltas incríveis. Dani, por exemplo, traz consigo uma personalidade um tanto quanto contraditória e comedida que oscila entre a austeridade e a benevolência – cuja explicação é-nos dada pouco antes da realização da primeira metade: ela, arrastada para um casamento premeditado desde quando era criança, viu sua vida e seu futuro se desmantelando, impotente
Para tentar salvar a si mesma e encontrar uma espécie de prospecto perdido, Dani cruza caminho com Flora (Amelie Bea Smith) e Miles (Benjamin Evan Ainsworth), as crianças da família Wingrave que perderam os pais em um trágico acidente. Tuteladas pela governanta Hannah (T’Nia Miller), a elas foi requisitada a presença de uma au pair que estivesse disposta a educá-los e a insurgir como uma espécie de figura maternal para guiá-los num árduo amadurecimento. Mas algo não parece certo – e Dani percebe que, enquanto Flora tem momentos constantes de devaneio, Miles foi expulso do reformatório ao qual havia sido mandado e tem comportamento um tanto quanto psicótico. Não demora muito para que a protagonista se veja no centro de um turbilhão emocional que escorre para segredos obscuros e mortais.
Flanagan investe seus esforços para presentear os fãs desse terror psicológico com o purismo gótico que tanto alimentou o imaginário popular dos séculos XVII e XVIII – recentemente revisitado por outros thrillers intimistas como ‘O Babadook’ e ‘A Bruxa’. Assim como Robert Eggers, por exemplo, ele aposta suas fichas em incursões artísticas sinestésicas, que realizam um coreografado movimento de dilatação e contração para nos guiar através de caminhos tortuosos que chegam a becos sem saída e nos forçam a refazer os passos: temos a presença minimalista de uma diabólica orquestra que une estilos modernos e epopeicos em um único lugar – mas, ao contrário do espetáculo visual que poderíamos esperar, a trama é pincelada por metafóricos e verborrágicos diálogos que se nutrem de alegorias temáticas irretocáveis.
O time de roteiristas é sagaz ao ambientar esse novo escopo nos anos 1980, não pensando duas vezes antes de arquitetar uma ausência cronológica de peso propositalmente perceptível para nos “orientar” – algo bastante irônico, considerando que, em certos momentos, excessos volúveis acabam por nos tirar dos trilhos. Mas nada disso importa quando, ao final de cada cena eximiamente bem pensada, os espectadores lidam com verdades absolutas e concepções universais que não podem ser mudadas nem pelos seres mais obstinados. Dani, enfrentando demônios do passado que parecem ganhar uma ameaçadora forma na propriedade Bly, percebe que precisa se recompor se quer ajudar os outros – ainda mais quando passa a conhecer o trágico romance shakespeariano entre Peter Quint (Oliver Jackson-Cohen na atuação de sua carreira) e Rebecca Jessel (Tahirah Sharif), au pair que se jogou no lago após ser abandonada por seu amado.
Eventualmente deixando que a crueza tome as rédeas da narrativa, é notável de que modo a potencializada imagética faz o máximo para se manter parecida com a temporada anterior, mas sem emulá-la ao ponto de se tornar uma fórmula mesquinha e sem sabor. Diferente de ‘Residência Hill’, as inflexões são regadas por um requinte profundo do expressionismo alemão e por um primitivo surrealismo que acompanha os personagens – sendo no espectro aterrorizante das construções, seja nos enquadramentos de câmera. Os estímulos simbólicos são acompanhados ou por declamações mitológicas ou por poesias singulares, proferidas por personagens que estão a um passo de darem adeus, Flanagan cria outra pérola do entretenimento (por mais que essa não esteja tão lapidada quanto sua conterrânea).
‘A Maldição da Mansão Bly’ vem como mais um indicativo de que Flanagan é uma das mentes mais geniais da atualidade por não se restringir a qualquer coisa que deseje fazer – deixando claro para quem ousar mergulhar em seus cosmos repletos de angústia, pesar e uma agridoce reflexão sobre a inevitabilidade do tempo e da morte.