Sean Baker não é um dos diretores mais elogiados da atualidade por qualquer motivo: ao longo de sua carreira, o cineasta encabeçou títulos que se tornaram sucesso de crítica e de público pela ambiguidade entre crueza e sutileza com que construiu suas produções, como ‘Tangerina’ e ‘Projeto Flórida’. Em 2024, Baker retornou aos holofotes com o lançamento de ‘Anora’, um ambicioso ímpeto criativo que teve sua estreia mundial no Festival de Cannes e que levou para casa um dos prêmios mais cobiçados do evento – a Palma de Ouro. E isso não vem como surpresa: por quase duas horas e meia, o diretor arquiteta um potente e tragicômico tour-de-force liderado por performances irretocáveis e uma trama absurdista no melhor sentido do termo.
O enredo acompanha Anora (Mikey Madison), uma dançarina de um clube de strip-tease e uma garota de programa que vê sua vida mudar de uma hora para a outra. Após conhecer o filho de um poderoso oligarca russo, Vanya (Mark Eudelshteyn), que a contrata para ser sua namorada por uma semana. Após sete dias regados a viagens insanas, bebidas caras e luxos ostentosos, Vanya resolve pedi-la em casamento – e, aceitando mergulhar nessa loucura inexplicável, Anora se torna sua esposa. Porém, esse conto de fadas chega ao fim mais rápido do que o imaginado quando os pais de Vanya resolvem voltar da Rússia e obrigá-lo a anular o casamento, alegando que seu relacionamento trará nada além de vergonha para o nome da família. E é a partir daí que tudo escala a um propositalmente exagerado melodrama que coloca ‘Deus da Carnificina’ sob uma dose letal de esteroides.
Apesar de descrito como um drama, ‘Anora’ emerge como uma obra fílmica que consegue borrar os limites delineados entre os gêneros narrativos. Percebemos desde os primeiros minutos que o escopo atmosférico, pincelado com o hedonismo estético e artístico de um realismo mágico que divide os múltiplos atos. A ideia é fundir o prazer fugaz com a dureza de uma realidade sóbria, seja no conflito entre as paletas de cores, seja na oscilação de uma bem estruturada fotografia assinada por Drew Daniels. No final das contas, não é possível colocá-lo apenas em um rótulo, conforme o escopo escala a níveis estratosféricos e aposta fichas na maximização das complicadas relações humanas.
Um outro tema trazido por Baker às telonas é a efemeridade da psique humana, traduzida de forma palpável através da construção de cada um dos personagens – inclusive, os coadjuvantes possuem papel de considerável destaque na trama principal. Anora e Vanya são dois jovens inconsequentes, mas não de maneira similar: enquanto este se mantém preso em um ciclo sem fim de festas, álcool e sexo, resguardado não só pelo nome da família, como pelo dinheiro que o protege da brutalidade do mundo, aquela é forçada a colocar um sorriso no rosto noite após noite para conseguir o mínimo para sobreviver em meio a uma aferrada vigilância e a um julgamento depreciador. É claro que, ao permitir que essas duas perspectivas se engolfassem em uma explosão sexual e emocional, Baker, responsável pelo roteiro, premedita a tragédia e um anticlímax elaborado com sagacidade e ousadia.
O diretor conduz o longa com maestria invejável, garantindo que cada frame seja arquitetado como uma pintura, puxando elementos de inúmeras escolas artísticas a fim de reuni-las em uma aventura instigante e lunática. As emoções permanecem afloradas do começo ao fim e abrem espaço para que o público se conecte em várias camadas com as personas, odiando-as ou compreendendo-as. Esse, aliás, é um dos maiores acertos do filme e um dos motivos que o consagra como uma das entradas mais originais e envolventes dos últimos anos na sétima arte.
Não podemos, é óbvio, deixar de comentar sobre as atuações. Eudelshteyn faz um trabalho admirável como o mimado Vanya, ensandecido em meio às regalias que a vida lhe dá e agindo sem qualquer pensamento racional conforme arrasta todos à sua volta a um vórtice de autocomiseração e frustração; Karren Karagulian, dando vida a Toros, braço-direito do pai de Vanya, é uma boa adição ao elenco ao perceber que pode perder o emprego e a reputação caso não resolva esse enorme problema e coloque o jovem herdeiro de volta nos eixos; e até mesmo Yura Borisov, encarnando o capanga Igor, foge dos maniqueísmos do tipo social que lhe é dado ao adorná-lo com uma humanidade inesperada.
Porém, a estrela principal é Madison. A atriz, que já havia participado de projetos como ‘Era Uma Vez em… Hollywood’ e ‘Pânico’ (neste último, rendendo-se à roupagem de uma serial killer com vitalidade assustadora), se doa de corpo e alma à personagem titular em uma performance simplesmente impecável e que singra pela complexa e circinal complexidade de Anora. Apesar de parecer superficial, a protagonista é anfigúrica a cada cena e a cada ato – e Madison permite que ela escale a uma profundidade angustiante. Apostando fichas no forte sotaque de Nova Jersey para compô-la e em um fraseamento que tangencia a musicalidade, ninguém se assustaria caso ela conquistasse uma indicação ao Oscar.
‘Anora’ pode posar como um longa superficial – mas alcança seu objetivo por abraçar essa aparência e partir dessa premissa para engendrar uma história desatinada que corrompe as ideias de amor, possessão, desejo e decepção em um objetivo distorcido e muito fascinante.