O Rio de Janeiro tem sido vítima de si mesmo há décadas. Refém de seu povo, que também sofre como sendo estatística de todo o caos que norteia a cidade, a capital carioca, uma das mais belas do país (e porque não no mundo) padece em cinzas e pólvora. Tem tudo para ser gigante, mas morre diariamente enquanto tenta encontrar soluções por meio de figuras políticas corruptas e indigestas. Mas nos últimos anos, a coisa ganhou agravantes. Com a especulação imobiliária, a violência e o caos da construção civil em virtude da promessa das Olimpíadas de 2016, a cidade entrou em estado permanente de “expurgo”. Rapidamente, ela expulsa os seus, como se eles fossem indignos do lugar onde nasceram. Em Mormaço, essa crise sócio econômica, cultural e humanitária ganha voz, em um drama poderoso, dirigido por Marina Meliande.
Trazendo o elemento fantástico para sua narrativa, a jovem cineasta faz um exímio retrato do que o Rio de Janeiro se tornou, em virtude da suposta ideia de progresso e desenvolvimento – explanada na teoria política e ignorada na prática. Trazendo a história de uma comunidade local que se viu forçada a desapropriar a região, abrindo espaço para a chegada de um novo e grandioso hotel, ela ainda faz um relato real, usando a ficção como o artifício principal. E embora a narrativa seja simbólica, ela representa tantas famílias verdadeiras que foram forçadas a se despedirem de seus lares, do pouco que tinham. Com suas vidas sendo transformadas da noite para o dia, entre retroescavadeiras e demolições, o passado que construíram se torna uma dobra de um tempo apagado da cidade. Bairros inteiros extintos, relações comunitárias despedaçadas e um fim abrupto da sensação de pertencimento.
Extraindo essas emoções para as telonas, Mormaço conta essa história a partir da absorção de uma jovem servidora, uma defensora pública responsável por garantir os direitos da comunidade afetada pela desapropriação forçada. Marina Provenzzano vive Ana, uma mulher solitária que sente na pele (literalmente) os efeitos que as obras das Olimpíadas do Rio estão trazendo sobre a sua e para a vida de tantos outros moradores. Vítima também da especulação imobiliária, ela vê seu condomínio ser gradativamente abandonado pelos demais vizinhos, sem sequer dar um passo adiante. Imersa nessa realidade de destruição, seu corpo começa a sentir as dores do parto, como uma espécie de doença auto imune, que chega e se alastrar sem cerimônias e sem explicações.
E toda essa construção emocional e física do drama é profundamente tocante. Como um filme bem roteirizado, assinado por Meliande e Felipe Bragança, o longa nacional aborda a temática de abandono, negligência e descaso público com genialidade, gerando empatia na audiência, à medida que a incomoda com questionamentos reais a respeito de até que ponto o governo pode invadir a individualidade de suas comunidades. Com a personagem Ana sendo aquela que dita o ritmo da história, Mormaço traz efeitos visuais de grande qualidade e trabalha a maquiagem com maestria no corpo da protagonista, retratando uma figura que – tamanha ansiedade, inquietação e angústia – começa a ver seu corpo definhar, apodrecendo, mofando. Essa semiótica, por meio de metáfora simbólica, é um dos aspectos mais fascinantes da produção, que ganha ares de ficção científica, se encaixando confortável e lindamente como um filme de gênero.
Com um desfecho hipnotizante e cheio de alegorias, Mormaço é um banquete visual do cinema-arte brasileiro, tem cheirinho de festival internacional (como Cannes e Sundance) e absorve a audiência para dentro do caos narrativo, nos fazendo sentir e – até mesmo – nos enojar com a forma como Ana apodrece ao longo de sua trajetória. Sensível e realista, o drama é uma aula sobre o preço do desenvolvimento desordenado e corrupto que acontece em nosso país.