A ditadura militar no Brasil foi um dos períodos mais sombrios da história moderna do país. Durante anos, a maior parte dos eventos ocorridos durante os anos em que o país ficou sob o regime militar ficou desconhecida pela sociedade. Recentemente, através de grupos como a Comissão da Verdade, por exemplo, pesquisadores estão conseguindo resgatar e divulgar arquivos e dados dos indivíduos que foram presos naquela época. Destas pesquisas, muitos dados das prisões de artistas brasileiros vieram à público, dentre os quais alguns dos arquivos referentes à prisão do cantos e compositor Caetano Veloso – e que, agora, são verbalmente apresentados no documentário ‘Narciso em Férias’.
Antes de nos lançarmos à crítica do produto fílmico em si, é preciso registrar aqui que todas as memórias e documentos do período da ditadura militar devem ser respeitados, divulgados, registrados e conhecidos pelos cidadãos brasileiros, pois só assim, com as memórias do passado, será possível construir um futuro em que violências como as que foram cometidas não se repitam mais.
Dito isto, enquanto filme, ‘Narciso em Férias’ talvez se enquadre mais como uma longa entrevista gravada no formato audiovisual do que no estilo documental. É que, bom, basicamente o filme todo é o Caetano sentado na cadeirinha contando suas memórias, e somente no final, já nos créditos, há a exposição de algumas fotos e documentos recuperados pela pesquisa incrível de Lucas Pedretti. Além disso, vez ou outra o espectador ouve, em off, a voz de alguém que está conduzindo essa entrevista com Caetano (possivelmente um dos diretores, Renato Terra ou Ricardo Calil, ou mesmo do pesquisador Lucas Pedretti), que faz algumas perguntas ao entrevistado, induzindo a resposta que ele quer ouvir – por exemplo, em dado momento o entrevistador pergunta “então nesse momento a polícia te colocou num camburão?”, e Caetano, refletindo, por fim responde “é, nos colocaram assim, num carro comprido da polícia, fechado atrás”… dá para sentir a diferença na abordagem do assunto?
Essa voz em off do entrevistador não apresentaria interferência no conjunto fílmico não fosse o fato de, por sua repetição ao longo do filme, passar a sensação de que tudo aquilo que estamos vendo é, na verdade, uma segunda versão de uma conversa que já ocorreu. Ou seja, é como se a produção tivesse ouvido uma primeira vez todo o relato de Caetano e, desta primeira conversa tivesse surgido a ideia de gravar o relato num documentário; assim, num segundo encontro, já com as câmeras ligadas, tentou-se reproduzir aquela primeira conversa reveladora. Esta é a sensação que as perguntas causam, pois elas antecipam fatos ainda sequer mencionados pelo entrevistado, mas pode ser que não tenha acontecido assim. Quem sabe?
O longa de uma hora e meia é o único representante brasileiro no Festival de Veneza de 2020 – que, por sua vez, é também o único festival de cinema internacional neste período de pandemia que está sendo realizado presencialmente. É também um filme que traz um importantíssimo registro memorialístico de uma das mais importantes personalidades artísticas do país. Em ‘Narciso em Férias’ – título dado pelo próprio Caetano ao capítulo de seu livro que se referia às suas memórias do seu tempo no cárcere –, Caetano Veloso perlabora as dores do passado e mostra ao público o quanto o nosso futuro tem a ver com conhecer esse passado para não repeti-lo. Tomara que o público do mundo inteiro seja tocado pelo testemunho dele.