terça-feira , 11 março , 2025

Crítica Netflix | Adolescência – Uma minissérie sem cortes e um alerta implacável para a era digital


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Dois policiais conversam dentro de uma viatura sobre o filho de um deles, que sempre arranja uma desculpa para não ir à escola. Isso sugere que há algo errado com o adolescente ou com a instituição de ensino. Logo em seguida, eles são chamados para realizar a prisão na casa de um suspeito. Em uma residência no subúrbio do norte da Inglaterra, os policiais arrombam a porta, rendem os pais e sobem para o quarto de Jamie (Owen Cooper), de 13 anos. Seu rosto de bochechas rosadas reflete pavor e um ar de pura inocência enquanto grita: “Eu não fiz nada!” e, tomado pelo medo, se urina. 

Esta mise-en-scène inicial em plano-sequência é o ponto de partida da nova minissérie Adolescência (Adolescence), da Netflix. Dividida em quatro episódios de uma hora, cada capítulo não apresenta cortes do início ao fim. A dupla responsável por essa narrativa intensa e perturbadora é a mesma do excelente e frenético O Chef (2021). Philip Barantini assume a direção, enquanto o roteiro fica por conta de Jack Thorne (Enola Holmes) e Stephen Graham, que também interpreta o pai de Jamie na minissérie



Stephen Graham e Owen Cooper em Adolescência. (Foto: Netflix © 2024)
Stephen Graham e Owen Cooper em Adolescência. (Foto: Netflix © 2024)

Durante o primeiro episódio, o uso contínuo do plano-sequência em uma trama policial é uma escolha ousada, porém exaustiva. Muitas tomadas acompanham personagens de costas e focam em pescoços caminhando de uma sala para outra na delegacia, após a prisão do garoto. Por outro lado, a sequência em que Jamie, sozinho na viatura, desaba em lágrimas, é um dos momentos mais impactantes e explora a imaginação do espectador. Esse episódio constrói um suspense envolvente em torno das provas do crime e da incredulidade tanto dos pais quanto da audiência. 

Embora trata-se de um crime entre adolescentes da mesma escola, Adolescência não é baseada em fatos reais, tampouco busca oferecer respostas definitivas. A minissérie convida à reflexão sobre a formação dos jovens na sociedade contemporânea. Mais do que uma simples trama de “quem matou” e “por que matou”, a narrativa conduz o espectador a considerar todas as possibilidades e responsabilidades envolvidas, evitando simplificações ou julgamentos precipitados.

A 102 Unit 00506 RT
Inspetor Bascombe (Ashley Walters) e Sargento Frank (Faye Marsay) em Adolescência. (Foto: Ben Blackall/Netflix © 2024)

O segundo episódio remete ao estilo claustrofóbico de O Chef, mas em proporções monumentais, pois se passa inteiramente dentro da escola. O plano-sequência dita o ritmo de busca pela verdade. Logo nos primeiros diálogos, entretanto, entre os policiais DS Misha Frank (Faye Marsay) e DI Luke Bascombe (Ashley Walters) — cujo filho estuda na instituição —, percebe-se a inutilidade das investigações no local: os adolescentes se mostram hostis ou zombeteiros em relação ao caso.


Aqui, o criador Stephen Graham provoca uma reflexão sobre a juventude e o abismo interpretativo entre adultos e adolescentes na era digital. Desde o início, a faca utilizada no crime nos é apresentada por um dos amigos de Jamie, mas a real motivação para um menino de 13 anos assassinar uma colega mais velha permanece uma incógnita. Somente no final, surgem indícios de sua ligação com a cultura incel (celibato involuntário).

A 102 Unit 00176 RT
Adam Bascombe (Amari Jayden Bacchus) e Detetive Inspector Bascome (Ashley Walters), em Adolescência. (Foto: Ben Blackall/Netflix © 2024)

No terceiro episódio, a narrativa se afasta da multidão e se concentra em um embate psicológico entre duas figuras: a psicóloga Briony Ariston (Erin Doherty) e Jamie, sete meses após seu encarceramento. Ela possui a incumbência de escrever um relatório sobre o comportamento do garoto. A conversa começa de maneira cordial, com a oferta de um chocolate quente e um sanduíche, mas logo evolui para um diálogo tenso e revelador. Durante uma hora sem cortes, o ator iniciante Owen Cooper justifica sua escolha para o papel, entregando uma performance que transita entre fragilidade, confusão, revolta e, por fim, a aceitação de seus atos, antes negados com seus angelicais olhos azuis. 

Se os três primeiros episódios estabelecem um fluxo intenso de emoções e conflitos, o episódio final é um verdadeiro clímax catártico. Quem aprecia narrativas elípticas e centradas em grandes eventos — como eu —, as quais deixam ao espectador construir os possíveis caminhos entre os momentos chaves, encontrará neste capítulo um olhar profundo sobre culpa e redenção.

Assista também: 
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Na sequência final — sempre sem cortes —, a série foca na família de Jamie, especialmente em seu pai, Eddie Miller (Stephen Graham).Treze meses após o crime, acompanhamos seu aniversário de 50 anos, celebrado com a esposa Manda (Christine Tremarco) e a filha Lisa (Amelie Pease), as três outras vítimas ocasionais do ato de Jamie.

Adolescence UK n S1 E4 00 48 42 10
Christine Tremarco e Stephen Graham em Adolescência. (Netflix © 2024)

É inevitável a relação com o longa Precisamos Falar sobre o Kevin (2011), de Lynne Ramsay, cuja comiseração e amor materno se apropriam da protagonista pelos ato bárbaro do filho. Aqui, Stephen Graham oferece uma atuação visceral, oscilando entre pesar, medo e descontrole. Algumas das revelações feitas por Jamie à psicóloga desafiam a visão que se tem sobre o papel do pai em sua vida: esta figura masculina foi a faísca para um adolescente se tornar misógino e feminicida?

Diferentemente de narrativas que buscam explicações simplistas – como abuso familiar, pais ausentes ou vícios –, Adolescência apresenta uma família trabalhadora comum. Eddie é um patriarca brusco, mas presente. Manda é uma mãe amorosa. Lisa, uma irmã sensível. Assim, a produção expande sua análise para além do lar, abordando a influência da internet e das redes sociais. As mensagens trocadas entre Jamie e sua vítima são um dos poucos indícios de contato entre eles, ressaltando o impacto do mundo virtual nas interações juvenis.

A 103 Unit 00116 RT
Erin Doherty como psicóloga Briony Ariston em Adolescência. (Foto: Ben Blackall/Netflix © 2024)

Se a violência no ambiente escolar já foi explorada em filmes como Elefante (2003), de Gus Van Sant, Adolescência adiciona um novo elemento: a constante exposição a conteúdos digitais. TikTok, Instagram e outras redes oferecem vídeos curtos sem restrição etária, moldando a visão de mundo de uma geração. Ao evitar respostas fáceis e levantar questões inquietantes, a minissérie nos obriga a refletir: como podemos controlar os discursos de ódio e sua influência nos jovens?

Reflexiva e arrebatadora, Adolescência se destaca não apenas por sua direção ousada em plano-sequência e atuações memoráveis, mas também por sua abordagem corajosa e necessária sobre violência juvenil e os perigos da era digital. Um alerta incômodo, mas essencial. 

 

Adolescência (Adolescence) estreia dia 13 de março na plataforma de streaming da Netflix.


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Letícia Alassë
Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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Esta mise-en-scène inicial em plano-sequência é o ponto de partida da nova minissérie Adolescência (Adolescence), da Netflix. Dividida em quatro episódios de uma hora, cada capítulo não apresenta cortes do início ao fim. A dupla responsável por essa narrativa intensa e perturbadora é a mesma do excelente e frenético O Chef (2021). Philip Barantini assume a direção, enquanto o roteiro fica por conta de Jack Thorne (Enola Holmes) e Stephen Graham, que também interpreta o pai de Jamie na minissérie

Stephen Graham e Owen Cooper em Adolescência. (Foto: Netflix © 2024)
Stephen Graham e Owen Cooper em Adolescência. (Foto: Netflix © 2024)

Durante o primeiro episódio, o uso contínuo do plano-sequência em uma trama policial é uma escolha ousada, porém exaustiva. Muitas tomadas acompanham personagens de costas e focam em pescoços caminhando de uma sala para outra na delegacia, após a prisão do garoto. Por outro lado, a sequência em que Jamie, sozinho na viatura, desaba em lágrimas, é um dos momentos mais impactantes e explora a imaginação do espectador. Esse episódio constrói um suspense envolvente em torno das provas do crime e da incredulidade tanto dos pais quanto da audiência. 

Embora trata-se de um crime entre adolescentes da mesma escola, Adolescência não é baseada em fatos reais, tampouco busca oferecer respostas definitivas. A minissérie convida à reflexão sobre a formação dos jovens na sociedade contemporânea. Mais do que uma simples trama de “quem matou” e “por que matou”, a narrativa conduz o espectador a considerar todas as possibilidades e responsabilidades envolvidas, evitando simplificações ou julgamentos precipitados.

A 102 Unit 00506 RT
Inspetor Bascombe (Ashley Walters) e Sargento Frank (Faye Marsay) em Adolescência. (Foto: Ben Blackall/Netflix © 2024)

O segundo episódio remete ao estilo claustrofóbico de O Chef, mas em proporções monumentais, pois se passa inteiramente dentro da escola. O plano-sequência dita o ritmo de busca pela verdade. Logo nos primeiros diálogos, entretanto, entre os policiais DS Misha Frank (Faye Marsay) e DI Luke Bascombe (Ashley Walters) — cujo filho estuda na instituição —, percebe-se a inutilidade das investigações no local: os adolescentes se mostram hostis ou zombeteiros em relação ao caso.

Aqui, o criador Stephen Graham provoca uma reflexão sobre a juventude e o abismo interpretativo entre adultos e adolescentes na era digital. Desde o início, a faca utilizada no crime nos é apresentada por um dos amigos de Jamie, mas a real motivação para um menino de 13 anos assassinar uma colega mais velha permanece uma incógnita. Somente no final, surgem indícios de sua ligação com a cultura incel (celibato involuntário).

A 102 Unit 00176 RT
Adam Bascombe (Amari Jayden Bacchus) e Detetive Inspector Bascome (Ashley Walters), em Adolescência. (Foto: Ben Blackall/Netflix © 2024)

No terceiro episódio, a narrativa se afasta da multidão e se concentra em um embate psicológico entre duas figuras: a psicóloga Briony Ariston (Erin Doherty) e Jamie, sete meses após seu encarceramento. Ela possui a incumbência de escrever um relatório sobre o comportamento do garoto. A conversa começa de maneira cordial, com a oferta de um chocolate quente e um sanduíche, mas logo evolui para um diálogo tenso e revelador. Durante uma hora sem cortes, o ator iniciante Owen Cooper justifica sua escolha para o papel, entregando uma performance que transita entre fragilidade, confusão, revolta e, por fim, a aceitação de seus atos, antes negados com seus angelicais olhos azuis. 

Se os três primeiros episódios estabelecem um fluxo intenso de emoções e conflitos, o episódio final é um verdadeiro clímax catártico. Quem aprecia narrativas elípticas e centradas em grandes eventos — como eu —, as quais deixam ao espectador construir os possíveis caminhos entre os momentos chaves, encontrará neste capítulo um olhar profundo sobre culpa e redenção.

Na sequência final — sempre sem cortes —, a série foca na família de Jamie, especialmente em seu pai, Eddie Miller (Stephen Graham).Treze meses após o crime, acompanhamos seu aniversário de 50 anos, celebrado com a esposa Manda (Christine Tremarco) e a filha Lisa (Amelie Pease), as três outras vítimas ocasionais do ato de Jamie.

Adolescence UK n S1 E4 00 48 42 10
Christine Tremarco e Stephen Graham em Adolescência. (Netflix © 2024)

É inevitável a relação com o longa Precisamos Falar sobre o Kevin (2011), de Lynne Ramsay, cuja comiseração e amor materno se apropriam da protagonista pelos ato bárbaro do filho. Aqui, Stephen Graham oferece uma atuação visceral, oscilando entre pesar, medo e descontrole. Algumas das revelações feitas por Jamie à psicóloga desafiam a visão que se tem sobre o papel do pai em sua vida: esta figura masculina foi a faísca para um adolescente se tornar misógino e feminicida?

Diferentemente de narrativas que buscam explicações simplistas – como abuso familiar, pais ausentes ou vícios –, Adolescência apresenta uma família trabalhadora comum. Eddie é um patriarca brusco, mas presente. Manda é uma mãe amorosa. Lisa, uma irmã sensível. Assim, a produção expande sua análise para além do lar, abordando a influência da internet e das redes sociais. As mensagens trocadas entre Jamie e sua vítima são um dos poucos indícios de contato entre eles, ressaltando o impacto do mundo virtual nas interações juvenis.

A 103 Unit 00116 RT
Erin Doherty como psicóloga Briony Ariston em Adolescência. (Foto: Ben Blackall/Netflix © 2024)

Se a violência no ambiente escolar já foi explorada em filmes como Elefante (2003), de Gus Van Sant, Adolescência adiciona um novo elemento: a constante exposição a conteúdos digitais. TikTok, Instagram e outras redes oferecem vídeos curtos sem restrição etária, moldando a visão de mundo de uma geração. Ao evitar respostas fáceis e levantar questões inquietantes, a minissérie nos obriga a refletir: como podemos controlar os discursos de ódio e sua influência nos jovens?

Reflexiva e arrebatadora, Adolescência se destaca não apenas por sua direção ousada em plano-sequência e atuações memoráveis, mas também por sua abordagem corajosa e necessária sobre violência juvenil e os perigos da era digital. Um alerta incômodo, mas essencial. 

 

Adolescência (Adolescence) estreia dia 13 de março na plataforma de streaming da Netflix.

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Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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