quinta-feira , 21 novembro , 2024

Crítica Netflix | Estou Pensando em Acabar com Tudo – Charlie Kaufman é soberano em alimentar nosso pesadelo existencial

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Estou Pensando em Acabar com Tudo (I’m Thinking of Ending Things) começa com as reflexões de uma jovem (Jessie Buckley) sobre a jornada para conhecer os pais do namorado Jake (Jesse Plemons). Juntos há seis semanas, o casal realiza sua primeira viagem e ela começa a questionar os motivos desse encontro, já que não enxerga um futuro para relação e mantém um olhar nostálgico sobre os momentos compartilhados com o rapaz. 

Com a neve a cair torrencialmente na estrada, Charlie Kaufman cria mais uma vez um cenário de angústia, apreensão e mistério sobre nossas percepções e desejos dentro da sua ótica surrealista. Algo que faz com maestria tanto em seus roteiros, vide Quero Ser John Malkovich (1999), Adaptação (2002) e Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004), quanto na sua veia de diretor ao comandar os inquietantes Sinédoque, Nova Iorque (2008) e Anomalisa (2015).



Baseado no romance homônimo do canadense Iain Reid, o desconforto narrativo é sentido pelo tom de voz da protagonista, enquanto o enigma é conduzido pelas ações embaçadas de Jake. Conforme eles conversam, a moça continua a pensar sobre a iminente separação e como os seus pensamentos estão salvos na sua cabeça, no entanto, a sensação é a de que Jake está sempre à espreita e pressente o seu objetivo. 

Observamos Jake pela visão da narradora, ela pondera as coisas que lhe agrada e o que lhe causa repulsa. Embora questione a relação, ela mantém uma curiosidade sobre a origem do rapaz e confessa ser este motivo de aceitar o convite para um jantar numa distante fazenda no meio de condições climáticas desagradáveis. Seus questionamentos aguçam os nossos à espera do próximo acontecimento. Entre conversas, a protagonista pondera: “os outros animais vivem o presente, os humanos não conseguem, por isso inventaram a esperança”. 

Quando a mãe (Toni Collette) e o pai (David Thewlis) entram em cena, Kaufman apresenta o seu melhor estilo de nos colocar no meio da aflição da protagonista. Os móveis e os objetos mudam de lugar, os personagens percorrem o passado, presente e futuro diante de nossos olhos em mudanças drásticas de fisionomia. A casa da infância é simbólica em diversos aspectos, lá estão guardados os medos, os anseios e os desejos de Jake. Enquanto a estética nos provoca, é possível montar um conjunto de informações e sentar à beira da poltrona para não deixar nenhum elemento escapar. 

O espaço residencial torna-se cada vez mais reduzido e sufocante. Ao passo que a jovem repete incansavelmente que precisa voltar para sua casa naquela noite, Jake está sempre a dar atenção a outros fatores. Collette e Thewlis são magnânimos em nos fazer apreciar cada cena com espanto e diligência. O poder da sugestão é posto de diversas formas e, nesse sentido, podemos fazer pontes com Mãe! (2017), de Darren Aronofsky, no entanto, a temática está mais voltada a Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004), Sonhando Acordado (2006) e A Espuma dos Dias (2013), todos de Michel Gondry.  

Estou Pensando em Acabar com Tudo vai longe em sua argumentação sobre a causalidade e o existencialismo para falar de relacionamentos e entrelaça-la à cultura pop. Ainda na primeira parte, o longa apresenta cortes da viagem de carro ao cotidiano de um zelador a rodar pelos corredores de uma escola e a assistir a uma comédia romântica de Robert Zemeckis (Forrest Gump). O que Charlie Kaufman quer nos dizer com este deslocamento? Em outro momento, os jovens questionam a obra Uma Mulher Sob Influência (1974), de John Cassavetes, e eles concordam que as pessoas veem muitos filmes a fim de “encher a cabeça de mentiras para passar o tempo”. 

Revelação no longa Wild Rose (2018), Jessie Buckley possui o tom e as reações perfeitas para as inquietudes decorrentes à sua volta, assim como Jesse Plemons já comprovou seu talento macabro, tanto no seriado Breaking Bad (2012-2013), quanto na comédia A Noite do Jogo (2018). Jake carrega um vazio e um lirismo em seu olhar distante e no encantamento pelos musicais da Broadway. Um papel que certamente seria do saudoso Philip Seymour Hoffman, protagonista de Sinédoque, Nova Iorque, ao lado de Kaufman

Por vezes, há uma pequena intenção de Jessie Buckley olhar diretamente para câmara como se falasse conosco. Afinal, toda a conversa dos dois vai remoer nossos pensamentos por algum tempo. A narrativa nos tensiona a esperar continuamente por um drástico acontecimento ou uma atenção mais aguçada a fim de compreender quem é Jake. Quem é a narradora? De quem é a voz que ela ouve no telefone? Quem é o zelador? Enquanto as perguntas transbordam, Kaufman nos lembra que tudo isso é poesia, assim como sua protagonista diz: “cores são ações e sofrimentos”. 

De forma poética fantasmagórica, Kaufman apresenta o futuro e o passado ao voltar à escola do ensino médio de Jake, onde o próprio diz ter se sentido rejeitado. Prestes a sofrer esta experiência novamente, Jake sai da rota e decide visitar uma sorveteria, a qual o jingle não sai da sua cabeça, o que nos remete às obras de David Lynch (Twin Peaks). Em seguida no meio de uma torrente nevasca, ele continua a mudar o caminho para chegar à instituição de ensino. 

Em forma de musical, o sonho do rapaz percorre os corredores do estabelecimento. O lúdico completa-se com os diálogos compartilhados anteriormente em forma de dança, premiação, canto e, por fim, a contemplação do público. 

Provavelmente, Jake não vai ganhar o prêmio nobel ou estrelar um musical, mas ali dentro dos seus pensamentos ele pode ter tudo isso. Ao citar Guy Debord e Oscar Wilde, entre demais artistas e pensadores, Charlie Kaufman discorre sobre a existência das relações humanas, da mais simples decisão de corresponder um olhar até lidar com todas as dores e frustrações do outro. Desse modo, Estou Pensando em Acabar com Tudo nos lembra da possibilidade de sonhar e o de ter esperança, mesmo que decidamos nunca subir ao palco.

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Letícia Alassë
Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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Com a neve a cair torrencialmente na estrada, Charlie Kaufman cria mais uma vez um cenário de angústia, apreensão e mistério sobre nossas percepções e desejos dentro da sua ótica surrealista. Algo que faz com maestria tanto em seus roteiros, vide Quero Ser John Malkovich (1999), Adaptação (2002) e Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004), quanto na sua veia de diretor ao comandar os inquietantes Sinédoque, Nova Iorque (2008) e Anomalisa (2015).

Baseado no romance homônimo do canadense Iain Reid, o desconforto narrativo é sentido pelo tom de voz da protagonista, enquanto o enigma é conduzido pelas ações embaçadas de Jake. Conforme eles conversam, a moça continua a pensar sobre a iminente separação e como os seus pensamentos estão salvos na sua cabeça, no entanto, a sensação é a de que Jake está sempre à espreita e pressente o seu objetivo. 

Observamos Jake pela visão da narradora, ela pondera as coisas que lhe agrada e o que lhe causa repulsa. Embora questione a relação, ela mantém uma curiosidade sobre a origem do rapaz e confessa ser este motivo de aceitar o convite para um jantar numa distante fazenda no meio de condições climáticas desagradáveis. Seus questionamentos aguçam os nossos à espera do próximo acontecimento. Entre conversas, a protagonista pondera: “os outros animais vivem o presente, os humanos não conseguem, por isso inventaram a esperança”. 

Quando a mãe (Toni Collette) e o pai (David Thewlis) entram em cena, Kaufman apresenta o seu melhor estilo de nos colocar no meio da aflição da protagonista. Os móveis e os objetos mudam de lugar, os personagens percorrem o passado, presente e futuro diante de nossos olhos em mudanças drásticas de fisionomia. A casa da infância é simbólica em diversos aspectos, lá estão guardados os medos, os anseios e os desejos de Jake. Enquanto a estética nos provoca, é possível montar um conjunto de informações e sentar à beira da poltrona para não deixar nenhum elemento escapar. 

O espaço residencial torna-se cada vez mais reduzido e sufocante. Ao passo que a jovem repete incansavelmente que precisa voltar para sua casa naquela noite, Jake está sempre a dar atenção a outros fatores. Collette e Thewlis são magnânimos em nos fazer apreciar cada cena com espanto e diligência. O poder da sugestão é posto de diversas formas e, nesse sentido, podemos fazer pontes com Mãe! (2017), de Darren Aronofsky, no entanto, a temática está mais voltada a Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004), Sonhando Acordado (2006) e A Espuma dos Dias (2013), todos de Michel Gondry.  

Estou Pensando em Acabar com Tudo vai longe em sua argumentação sobre a causalidade e o existencialismo para falar de relacionamentos e entrelaça-la à cultura pop. Ainda na primeira parte, o longa apresenta cortes da viagem de carro ao cotidiano de um zelador a rodar pelos corredores de uma escola e a assistir a uma comédia romântica de Robert Zemeckis (Forrest Gump). O que Charlie Kaufman quer nos dizer com este deslocamento? Em outro momento, os jovens questionam a obra Uma Mulher Sob Influência (1974), de John Cassavetes, e eles concordam que as pessoas veem muitos filmes a fim de “encher a cabeça de mentiras para passar o tempo”. 

Revelação no longa Wild Rose (2018), Jessie Buckley possui o tom e as reações perfeitas para as inquietudes decorrentes à sua volta, assim como Jesse Plemons já comprovou seu talento macabro, tanto no seriado Breaking Bad (2012-2013), quanto na comédia A Noite do Jogo (2018). Jake carrega um vazio e um lirismo em seu olhar distante e no encantamento pelos musicais da Broadway. Um papel que certamente seria do saudoso Philip Seymour Hoffman, protagonista de Sinédoque, Nova Iorque, ao lado de Kaufman

Por vezes, há uma pequena intenção de Jessie Buckley olhar diretamente para câmara como se falasse conosco. Afinal, toda a conversa dos dois vai remoer nossos pensamentos por algum tempo. A narrativa nos tensiona a esperar continuamente por um drástico acontecimento ou uma atenção mais aguçada a fim de compreender quem é Jake. Quem é a narradora? De quem é a voz que ela ouve no telefone? Quem é o zelador? Enquanto as perguntas transbordam, Kaufman nos lembra que tudo isso é poesia, assim como sua protagonista diz: “cores são ações e sofrimentos”. 

De forma poética fantasmagórica, Kaufman apresenta o futuro e o passado ao voltar à escola do ensino médio de Jake, onde o próprio diz ter se sentido rejeitado. Prestes a sofrer esta experiência novamente, Jake sai da rota e decide visitar uma sorveteria, a qual o jingle não sai da sua cabeça, o que nos remete às obras de David Lynch (Twin Peaks). Em seguida no meio de uma torrente nevasca, ele continua a mudar o caminho para chegar à instituição de ensino. 

Em forma de musical, o sonho do rapaz percorre os corredores do estabelecimento. O lúdico completa-se com os diálogos compartilhados anteriormente em forma de dança, premiação, canto e, por fim, a contemplação do público. 

Provavelmente, Jake não vai ganhar o prêmio nobel ou estrelar um musical, mas ali dentro dos seus pensamentos ele pode ter tudo isso. Ao citar Guy Debord e Oscar Wilde, entre demais artistas e pensadores, Charlie Kaufman discorre sobre a existência das relações humanas, da mais simples decisão de corresponder um olhar até lidar com todas as dores e frustrações do outro. Desse modo, Estou Pensando em Acabar com Tudo nos lembra da possibilidade de sonhar e o de ter esperança, mesmo que decidamos nunca subir ao palco.

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Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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