domingo , 22 dezembro , 2024

Crítica Netflix | Nada Ortodoxa é uma corajosa jornada de livre-arbítrio

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Com o aporte do talento e o carisma da atriz israelense Shira Haas, a minissérie Nada Ortodoxa (Unorthodox) apresenta uma cativante jornada de amadurecimento dentro da cultura secular judaica. Lançada em 26 de março pela Netflix, a obra é baseada no registro autobiográfica Unorthodox: The Scandalous Rejection of My Hasidic Roots (na tradução livre, Não ortodoxa: a rejeição escandalosa de minhas raízes hassídicas), de Deborah Feldman.

A partir do relato desse livro, a diretora Maria Schrader consegue nos inserir de forma lúcida na vivência de uma jovem criada dentro da seita hassídica Satmar, no bairro de Williamsburg, em Nova York, e o abandono de um casamento arranjado aos 19 anos. A narrativa repartida em quatro episódios, os quais são degustados como um filme de 3h33m sem interrupções, começa com a fuga de Esther Saphiro (Shira Haas), em meio às celebrações do Shabat, com destino à Alemanha. 



UNORTHODOX

Os acontecimentos são apresentados em dois momentos narrativos. Um é a busca do marido Yakov Shapiro (Amit Rahav) ao lado de Moische Lefkovitch (Jeff Wilbusch) pela esposa fugitiva, enquanto ela descobre Berlim e a si mesma. O outro é composto por flashbacks da preparação para o casamento até o estopim da decisão da jovem de arriscar-se a mais de 6.000 km de casa. 

Em um esforço de produção de design, maquiagem e fotografia, somos convidados a sentar-se à mesa e conhecer de perto os costumes e os hábitos de uma das células ultra-ortodoxas do judaísmo. Com pouca representativa na indústria cultural, as particularidades dessa comunidade começam a ser disseminadas por meio de narrativas de rebeldia, tal como no recente Desobediência (2018), com Rachel Weisz e Rachel McAdams

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Longe de ser uma obra contra a religião, ela é um espelho social das mulheres contemporâneas, as quais buscam o seu espaço público e o poder de mostrar a sua voz. Ou seja, o ponto central da diretora alemã Schrader é mostrar como o patriarcado e, neste caso atrelado ao dogmatismo, tem castrado durante séculos as mulheres. Desse modo, a rebeldia é a única chave para elas serem enxergadas como seres individuais assim como qualquer indivíduo do sexo masculino. 

Este debate é contado de forma gradual e emotiva por meio das aspirações e experiências de Esther. É possível vê-la radiante com a notícia do casamento e sentir a deterioração de suas esperanças a cada noite de frustração ao lado do marido. Longe de ser um vilão, o jovem Yakov é tão vítima quanto Esther de um sistema de poucas indulgências e grandes obrigações. 

Falado em grande parte na língua iídiche (do alemão jüdisch), Nada Ortodoxa é um trabalho de travessia de uma vida de limitação à liberdade de poder desejar qualquer coisa. Para compor esta passagem, o Conservatório de Música de Berlim serve de canal e palco para o autodescobrimento da protagonista, onde ela encontra o seu prazer na vida: a música; além de visões distintas do mundo por meio dos estudantes internacionais. 

Em sua busca por si mesma, ela é confrontada com a história de seus ancestrais assassinados e refugiados diante de locais emblemáticos do período nazista na Alemanha. Somando ao suspense e ao drama, o obra ainda encontra espaço para algumas reflexões sobre este movimento migratório de jovens descendentes de refugiados e todo o jogo psicológico sobre pertencimento. 

Em dúvida como aproximar-se da mãe (Alex Reid), a qual vive em Berlim, Esther encontra nos estudantes do conservatório uma solidariedade para tentar subir por conta própria os degraus da vida. Seja pela cruel sinceridade da israelense Yael (Tamar Amit-Joseph), a simpatia de Dasia (Safinaz Sattar), a compreensão do nigeriano homosexual Axmed (Langston Uibel), seja o interesse amoroso de Robert (Aaron Altaras), Esther consegue em poucos dias desembaraçar alguns nós e içar em direção às estrelas em uma belíssima explosão. 

Elaborado no último episódio, a apresentação de Esther no conservatório é a consagração da coragem da jovem em mudar o curso da sua vida. O momento simbólico pode ser comparado à encenação de Paula (Louane Emera) no filme francês A Família Bélier (2014) ao cantar em libras aos pais surdos. Aqui, a “surdez” é travestida pelos dogmas encravados no tempo e conservados pelo fanatismo. 

Recheada de drama, a minissérie ainda permite-se um humor debochado ao estilo Debi & Lóide: Dois Idiotas em Apuros (1994) a partir dos personagens Yakov e Moische, um excessivamente inocente e o outro malandramente estúpido. Esta dinâmica posiciona Nada Ortodoxa como um dos melhores projetos audiovisuais de 2020, ainda que estejamos no primeiro trimestre. O merecido valor é advindo do cuidado excepcional de respeito cultural, os personagens cativantes, o ritmo narrativo bem distribuído, a relevância temática e a ousadia linguística e dramática. 

Após estes quatro episódios, a Netflix disponibilizou o Nada Ortodoxa – Making of, um presente de 20 minutos para os espectadores ávidos por mais conhecimento. Apesar de fechar um arco narrativo, a produção deixa elementos em suspenso para uma possível continuação, caso seja de interesse do público e, consequentemente, dos realizadores.

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Letícia Alassë
Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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Com o aporte do talento e o carisma da atriz israelense Shira Haas, a minissérie Nada Ortodoxa (Unorthodox) apresenta uma cativante jornada de amadurecimento dentro da cultura secular judaica. Lançada em 26 de março pela Netflix, a obra é baseada no registro autobiográfica Unorthodox: The Scandalous Rejection of My Hasidic Roots (na tradução livre, Não ortodoxa: a rejeição escandalosa de minhas raízes hassídicas), de Deborah Feldman.

A partir do relato desse livro, a diretora Maria Schrader consegue nos inserir de forma lúcida na vivência de uma jovem criada dentro da seita hassídica Satmar, no bairro de Williamsburg, em Nova York, e o abandono de um casamento arranjado aos 19 anos. A narrativa repartida em quatro episódios, os quais são degustados como um filme de 3h33m sem interrupções, começa com a fuga de Esther Saphiro (Shira Haas), em meio às celebrações do Shabat, com destino à Alemanha. 

UNORTHODOX

Os acontecimentos são apresentados em dois momentos narrativos. Um é a busca do marido Yakov Shapiro (Amit Rahav) ao lado de Moische Lefkovitch (Jeff Wilbusch) pela esposa fugitiva, enquanto ela descobre Berlim e a si mesma. O outro é composto por flashbacks da preparação para o casamento até o estopim da decisão da jovem de arriscar-se a mais de 6.000 km de casa. 

Em um esforço de produção de design, maquiagem e fotografia, somos convidados a sentar-se à mesa e conhecer de perto os costumes e os hábitos de uma das células ultra-ortodoxas do judaísmo. Com pouca representativa na indústria cultural, as particularidades dessa comunidade começam a ser disseminadas por meio de narrativas de rebeldia, tal como no recente Desobediência (2018), com Rachel Weisz e Rachel McAdams

Longe de ser uma obra contra a religião, ela é um espelho social das mulheres contemporâneas, as quais buscam o seu espaço público e o poder de mostrar a sua voz. Ou seja, o ponto central da diretora alemã Schrader é mostrar como o patriarcado e, neste caso atrelado ao dogmatismo, tem castrado durante séculos as mulheres. Desse modo, a rebeldia é a única chave para elas serem enxergadas como seres individuais assim como qualquer indivíduo do sexo masculino. 

Este debate é contado de forma gradual e emotiva por meio das aspirações e experiências de Esther. É possível vê-la radiante com a notícia do casamento e sentir a deterioração de suas esperanças a cada noite de frustração ao lado do marido. Longe de ser um vilão, o jovem Yakov é tão vítima quanto Esther de um sistema de poucas indulgências e grandes obrigações. 

Falado em grande parte na língua iídiche (do alemão jüdisch), Nada Ortodoxa é um trabalho de travessia de uma vida de limitação à liberdade de poder desejar qualquer coisa. Para compor esta passagem, o Conservatório de Música de Berlim serve de canal e palco para o autodescobrimento da protagonista, onde ela encontra o seu prazer na vida: a música; além de visões distintas do mundo por meio dos estudantes internacionais. 

Em sua busca por si mesma, ela é confrontada com a história de seus ancestrais assassinados e refugiados diante de locais emblemáticos do período nazista na Alemanha. Somando ao suspense e ao drama, o obra ainda encontra espaço para algumas reflexões sobre este movimento migratório de jovens descendentes de refugiados e todo o jogo psicológico sobre pertencimento. 

Em dúvida como aproximar-se da mãe (Alex Reid), a qual vive em Berlim, Esther encontra nos estudantes do conservatório uma solidariedade para tentar subir por conta própria os degraus da vida. Seja pela cruel sinceridade da israelense Yael (Tamar Amit-Joseph), a simpatia de Dasia (Safinaz Sattar), a compreensão do nigeriano homosexual Axmed (Langston Uibel), seja o interesse amoroso de Robert (Aaron Altaras), Esther consegue em poucos dias desembaraçar alguns nós e içar em direção às estrelas em uma belíssima explosão. 

Elaborado no último episódio, a apresentação de Esther no conservatório é a consagração da coragem da jovem em mudar o curso da sua vida. O momento simbólico pode ser comparado à encenação de Paula (Louane Emera) no filme francês A Família Bélier (2014) ao cantar em libras aos pais surdos. Aqui, a “surdez” é travestida pelos dogmas encravados no tempo e conservados pelo fanatismo. 

Recheada de drama, a minissérie ainda permite-se um humor debochado ao estilo Debi & Lóide: Dois Idiotas em Apuros (1994) a partir dos personagens Yakov e Moische, um excessivamente inocente e o outro malandramente estúpido. Esta dinâmica posiciona Nada Ortodoxa como um dos melhores projetos audiovisuais de 2020, ainda que estejamos no primeiro trimestre. O merecido valor é advindo do cuidado excepcional de respeito cultural, os personagens cativantes, o ritmo narrativo bem distribuído, a relevância temática e a ousadia linguística e dramática. 

Após estes quatro episódios, a Netflix disponibilizou o Nada Ortodoxa – Making of, um presente de 20 minutos para os espectadores ávidos por mais conhecimento. Apesar de fechar um arco narrativo, a produção deixa elementos em suspenso para uma possível continuação, caso seja de interesse do público e, consequentemente, dos realizadores.

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Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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