Os debates na internet são intensos seja por conta da pandemia da Covid-19, seja sobre as queimadas em nossas florestas e reservas naturais. Será, entretanto, que ponderamos sobre os meios pelos quais realizamos essas ações? Qual foi a última vez que você questionou suas atividades na redes sociais? Aliás, você sabe quanto tempo passou conectado ao seu celular ou computador na última semana? Essas são algumas das questões motivadas pelo documentarista Jeff Orlowski em O Dilema das Redes (The Social Dilemma), lançado pela Netflix em setembro.
Se o assunto já chama atenção, o documentário impressiona pelas ótimas imagens e a construção de uma simulação do cotidiano familiar para alimentar os discursos dos diversos profissionais das redes sociais, pesquisadores e cientistas sobre o nosso relacionamento com essas mídias. Encabeçado por Tristan Harris, ex-designer da Google Inbox, a obra é objetiva e original por trazer as próprias cabeças por trás do sistema para depor sobre a transformação de uma ferramenta útil para uma máquina de manipulação.
Além da Google, estão presentes os representantes do Facebook, Instagram, Twitter, LinkedIn, entre outros aplicativos e navegadores dispostos a analisar como o seu trabalho começou de uma maneira, mas tomou outras formas a partir da monetização das redes. Até mesmo o primeiro investidor do Facebook, Roger McNamee, mostra-se preocupado com o encaminhamento das informações manuseadas pelas redes. Se por um lado, o discurso sobre o armazenamento de dados circula pela internet, por outro, como esses dados são manipulados e usados contra nós ainda é um tema ignorado pela maioria.
Para expandir a nossa reflexão, Jeff Orlowski personifica o usuário, por meio do adolescente Ben (Skyler Gisondo) e sua família, assim como a Inteligência Artificial (Vincent Kartheiser, da série Mad Men). Com depoimentos compreensíveis dos criadores dessas ferramentas, é possível visualizar exatamente como eles mesmos tentam de todas as formas afastar-se da tóxica atmosfera das redes sociais. Os próprios não permitem nenhum tempo de tela aos filhos, eles desativam notificações de redes e limitam o seu tempo com a internet, mesmo em relação ao trabalho.
Com dados sobre o crescimento vertiginoso dos casos de suicídio e automutilação das adolescentes norte-americanas a partir de 2010, O Dilema das Redes aponta consequências reais desse novo vício, comparando-os à injeção de drogas e também o maior número de operações cirúrgicas e depressão entre jovens. O protagonista Ben é como um estudo de caso sobre como a inteligência artificial opera em relação ao indivíduo para mantê-lo conectado a maior parte do tempo possível.
Por essas e outras razões, a vida parece ter mais cor nas telas dos smartphones, já que uma inteligência utiliza todas as informações de buscas do Google, por exemplo, para criar um ambiente ideal para cada indivíduo. Ou seja, o match no Tinder não é por acaso, as notícias que lemos não são as mesmas que os nossos pais e as buscas de suas pesquisas também diferem de acordo com a sua localidade.
Saber os detalhes da engrenagem vai nos afastar desses aplicativos? Não é essa questão, ao menos não para todos. Em contrapartida, o cientista social Jaron Lanier escreveu o livro Dez Argumentos Para Você Deletar Agora Suas Redes Sociais (2018) e defende o resoluto distanciamento desses aplicativos. Outros cientistas, como Anna Lembke, do departamento médico dedicado a vícios da Universidade de Stanford, acreditam que como qualquer outra substância as redes causam uma dependência cerebral, mas é possível olhar com otimismo para a resolução de uma “cura” em breve.
Cineasta dos belíssimos documentários Chasing Ice (2012) e Chasing Coral (2017), Jeff Orlowski não quer apenas apontar problemas, ele indaga por soluções, prismar e previsões para as nossas relações como esses aplicativos. Um deles de forma expositiva é a consciência sobre o modus operandi. Tristan Harris pondera como a ferramenta deixou de considerar utensílio no momento em que a comparação de podemos usá-la quando precisamos não cabe mais, já que existe uma intensidade de uso desnecessário e comprometedor à saúde pessoal.
Dentro dessa perspectiva, ainda como funcionário da Google em 2013, Harris distribui entre os colegas um manifesto intitulado “A Call to Minimize Distraction & Respect Users’ Attention” (em tradução livre, Um Chamado para Minimizar Distrações e Respeitar a Atenção dos Usuários). O documento sugeria as grandes Google, Apple e Facebook a assumir a responsabilidade de não induzir que os seres humanos passassem os seus dias enterrados nos smartphones. De lá para cá nada mudou, no entanto, Harris passou a comandar um centro de tecnologia humana.
Seus estudos agora estão concentrados na manipulação da mente humana por meio da tecnologia. O processo este que afeta as eleições democráticas, os exemplos das Filipinas, Estados Unidos e Brasil aparecem no documentário. Em outras palavras, passar o dia nas redes sociais não é mais uma questão de entretenimento. Um aprofundamento sobre esta questão é abordada nos documentários Privacidade Hackeada (2019), da Netflix, e After Truth: Disinformation and the Cost of Fake News (2020), da HBO.
Com uma linha de narrativa envolvente e responsavelmente alarmante, O Dilema das Redes provoca uma reflexão interna da nossa conexão como indivíduo, cidadão e funcionário com as redes sociais. Na jornada de Ben, a manipulação exercida pela inteligência artificial brinca com suas fraquezas e sentimentos. Quantas vezes o seu humor mudou por conta de algo visto nas redes sociais? Durante os créditos, os entrevistados dão conselhos para lidar com as redes; preste atenção e, quem sabe, ponha-as em prática.