O medo do outro foi e é um dos maiores catalizadores de atrocidades da humanidade. O medo de quem é diferente do padrão, do que é chamado de senso comum. Num mundo regido pelos princípios masculinos (a centralização de poder, as regras, os gostos), qual espaço a mulher ocupa? Qual espaço é permitido a elas? Mais especificamente: qual espaço é permitido às mulheres que se recusam a performar de acordo com as regências machistas do mundo? Embora muitas conquistas tenham sido conseguidas (principalmente nas últimas décadas), até pouco tempo atrás verdadeiros horrores eram cometidos contra as mulheres – como, por exemplo, a internação compulsória seguindo a vontade do marido ou do pai. Sim, isso aconteceu no Brasil, até meados dos anos 1980, e agora virou tema do filme ‘Ninguém Sai Vivo Daqui’, que chega a partir dessa semana aos cinemas brasileiros.
Elisa (Fernanda Marques) era uma jovem apaixonada pelo namorado, mas, após engravidar dele e se recusar a se casar com um homem bem mais velho que ela, que seu pai estava armando, a jovem é internada no Hospital Psiquiátrico Colônia, na cidade de Barbacena, em Minas Gerais. A princípio, pensa tratar-se de um engano, mas em bem pouco tempo fica claro para Elisa que seu pai a internara em um hospício porque ela pensara que poderia reger sua própria vida de acordo com suas vontades e desejos. Uma vez lá dentro, ela começa a entender a dinâmica do lugar, fazer amizade com outras reclusas e que o tal médico da instituição nem médico é. Para sobreviver ao local, Elisa precisará encontrar forças para superar os maus tratos e fugir dali.
‘Ninguém Sai Vivo Daqui’ é um projeto curioso. Baseado no livro “Holocausto Brasileiro”, da jornalista Daniela Arbex (que tem escrito sobre outras tragédias brasileiras, como a do Ninho do Urubu), o filme é, também, uma derivação de uma série de dez episódios lançada em 2021, de nome ‘Colônia’ (disponível na Globoplay), com os mesmos personagens, mesmo elenco e mesma sinopse.
Isto dito, ao contrário da série no filme a dinâmica dos eventos se dá de maneira mais acelerada; até por conta disso, a produção tem apenas uma hora e vinte de duração. Assim, o roteiro de Marco Dutra, Rita Glória Curvo e André Ristum enxuga os desenvolvimentos pessoais dos personagens periféricos e até mesmo da protagonista Elisa, em prol da objetividade do drama central do enredo. Essa escolha do diretor André Ristum serve, inclusive, como um convite a quem quiser se aprofundar mais no tema do Hospital Colônia.
Todo filmado em preto e branco, a produção conta com nomes tarimbados no elenco, como Andréia Horta (como uma reclusa na beira do colapso mental), Augusto Madeira (como um médico inescrupuloso), Rejane Faria (de ‘Marte Um’) e Bukassa Kabengele (de ‘O Jogo Que Mudou a História’), que se dedicaram em inúmeros ensaios no set para ambientar a trama naquele ambiente de horror vivido por tantas e tantos brasileiros.
Partindo do drama pessoal quase inocente, ‘Ninguém Sai Vivo Daqui’ evolui para um terror psicológico inspirado em eventos reais, o que piora a sensação de horror diante das torturas e maus-tratos sofridos pelos pacientes. Pela ficção, o filme joga luz sobre um tenebroso passado recente da história psiquiátrica brasileira, cujos respingos ainda pulsam nas veias desse país.