Quando o cinema brasileiro olha para si mesmo, e não tenta pegar carona no hype das produções americanas que inundam as salas de cinema todas as semanas, é que quase sempre uma garantia que teremos coisa boa vindo por aí… E No Coração do Mundo (2019) faz isso, uma produção surpreendentemente boa, que entrega ao mesmo tempo momentos reflexivos com uma ação desenfreada gigante.
No Coração do Mundo mostra uma visão minuciosa e profunda sobre o cotidiano da favela numa produção que como uma caixinha de surpresas acaba, a cada olhada, por fazer mudar nossa relação com o filme e como compreendemos todas as interações sociais mostradas, faladas e não faladas, que o roteiro nos entrega.
Escrito por Gabriel Martins e Maurilio Martins, que também dirigem o longa, na produção vemos a realidade de milhares de brasileiros trabalhadores na busca de seu dinheiro suado, conquistado em um dia-a-dia brutal e cansativo. No Coração do Mundo temos um olhar quase documental, e assim, bastante realista para um filme de ficção, seja por conta dos cenários, ou das locações, que mostra a vida na favela em Minas Gerais e de seus moradores, figuras que vivem suas próprias histórias, e longe dos grandes centros.
A dupla de diretores, assim, parecem pegar o espectador pela mão e nos leva para dentro das casas dos personagens, como se fôssemos moscas rondando as conversas, as interações, e as situações mostradas, onde temos a câmera parada, e o pouco uso do recurso de cortes, ou edição, para conhecemos os sonhos, expectativas, e o que esse grupo de pessoas esperam da própria vida. Vilões e mocinhos clássicos não são traçados aqui, apenas figuras complexas e que lidam com os pesares e as pequenas alegrias da vida.
Conhecemos os mais diversos tipos de personagens, são profissionais que trabalham como cobradores de ônibus, motoristas, e vendedores, todos na luta, na busca de ganhar seu dinheiro, pagar as contas, e seguir sua vida. Assim, No Coração do Mundo mostra uma realidade de muitos, onde os diálogos longos podem cansar pela falta de um foco, e que parecem incluir o espectador uma boa e velha conversa de vizinhas na janela, bem coisa do interior brasileiro.
Com uma trama um pouco inchada, por introduzir diversos personagens e suas histórias que nem sempre são contadas, apenas mostradas, os diretores mostram os problemas dessas pessoas, e nos apresentam situações, oras engraçadas, oras trágicas sobre a vida deles. No Coração do Mundo provoca reflexões profundas na medida que vemos todos eles na busca de um mundo mais favorável, na busca por adentrar o coração do mundo, um local onde as coisas serão melhores e mais felizes, mesmo que, às vezes, só exista, como um sonho, na nossa própria cabeça.
No Coração do Mundo então constrói sua trama de uma forma lenta, e que trabalha muito com a apresentação de seus personagens, e de suas vidas, que consideramos normais e sem muitas emoções, onde vemos Marcos (Leo Pyrata) e Selma (Grace Passô, ótima), que trabalham juntos, precisarem convencer a namorada do rapaz, a trabalhadora Ana (Kelly Crifer) a se juntar num trabalho por fora, onde a promessa de sair do banho maria que o trio leva suas vidas, presos dentro de uma rotina, casa, trabalho, contas, casa, trabalho…. é a garantia do sucesso. No Coração do Mundo mostra a escolha de caminhos fácies e difíceis, e das decisões que os personagens precisam tomar, onde um bico, os leva para um grande evento que promete a sonhada mudança na vida de todos eles.
Assim, No Coração do Mundo vem com ritmo crescente que aumenta a dose de tensão, e inunda a história com uma expectativa do que vem pela frente para o futuro dos personagens. Com momentos finais intensos, e com um ritmo quase sufocante de suspense, a produção embarca numa onda de tensão, ao apresentar uma grande história de assalto, que coloca em cheque tudo que vimos dos personagens até então, e realmente muda toda a visão que poderíamos ter do filme como um tudo.
O roteiro então se molda, parece que estamos em outro filme, e nos entrega um ritmo alucinante para finalizar sua história, onde todo o clímax do filme nos mostra as verdades amargas que esse grupo queria esconder, em que vemos o rumo que cada personagem toma sendo entregue com um forte e contemplativo final, o que garante totalmente moldar a experiência que o filme se apresenta para o espectador. No final das contas, No Coração do Mundo entrega boas e chocantes surpresas que precisam ser vistas na telona.