sábado , 2 novembro , 2024

Crítica | Normal People e o amor jovem na era das informações

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Nos primeiros minutos de ‘Normal People’, é possível que um espectador pense estar diante de mais uma série jovem-adulta tão bem-intencionada quanto genérica. Há uma protagonista, a outsider do colégio que é o alvo da implicância dos populares, no típico escopo deste microverso traumático da adolescência. O arrasa-corações, que é também o craque do time de futebol, é obviamente alguém com quem ela troca tímidos olhares vez ou outra, o que já escancara sobre o que é esta história: garoto conhece garota, eles se apaixonam, eles ficam juntos, se separam, e ficam juntos, e por aí vai. 

Mas tão logo percebe este lugar habitual, o público também enxerga que nem todas as peças se encaixam perfeitamente nos lugares que eram esperados neste jogo. Marianne é a garota quietinha e inteligente, mas também é sarcástica e sem o mínimo de paciência para levar desaforo para casa — do tipo que pede ao professor que “dê logo a advertência e siga em frente”. Ela também é uma das mais ricas e mora em uma verdadeira mansão com a mãe e o irmão.

Sua aproximação de Connell, que apesar de ser o craque popular também é o rapaz inteligente que não abandona os livros, ocorre no campo extraclasse justamente porque ele é de origem humilde e todos os dias vai à casa de Marianne buscar sua mãe, que trabalha para a família como faxineira. Um suposto jogo de poder entre os dois está sempre se invertendo. Se, na escola, ele é o popular e ela a excluída, fora dela o rapaz a admira mais do que gostaria de admitir. Ele está sempre em sua órbita, algo de que ela tem completa noção e que usa ao próprio favor, quando consegue dominar o medo e a rejeição.

Marianne e Connell em cena na série Normal People

O outro ponto que logo de cara já evidencia que ‘Normal People’ tem algo diferente a dizer é a rapidez com que vai direto ao ponto. Os dois têm uma relação ioiô, que começa nos meses finais do ensino médio e se estende por todo o começo da vida adulta, exatamente o período que a série cobre. Na escola, Connell e Marianne fingem que sequer se conhecem, mas não conseguem tirar as mãos um do outro dos portões para fora. O cinismo é o que os afasta — e depois os reúne, os afasta, os reúne, os afasta… você já entendeu.

Sem perder tempo, a série nos tira do ensino médio e nos leva para dentro do primeiro ano de Connell e Marianne na faculdade. Ela em seu curso e ele no dele, eles perderam contato e acabam se reencontrando sem querer quando o novo namorado de Marianne convida Connell para uma festa, sem saber nem mesmo que os dois se conhecem. Logo Marianne e Connell percebem como são inevitáveis na vida um do outro — e nós, junto. Quando eles se vêem, é como se não existisse mais nada em volta. Mas aqui as peças estão invertidas. Marianne, outrora a outsider, tem um barulhento grupo de amigos, enquanto Connell perambula sozinho pelos corredores e bibliotecas. É irônico, trágico e também bastante simpático. 

Esse desequilíbrio, aliás, é parte da graça, e vai se invertendo e nos desafiando ao longo de toda a temporada. Os episódios passeiam por grandes momentos dos primeiros anos adultos dos protagonistas, esclarecendo como cada encontro e desencontro provocou reações e evoluções diferentes nos dois.  

O segredo, aqui, parece ser a distorção ao mesmo tempo doce e dolorosa do romance adolescente e sua floração no mundo jovem-adulto. Você se apaixona por Marianne e Connell porque um é o que o outro precisa para se sentir confortável em sua própria pele, e isso se torna evidente pelo quão diferentes eles são em quase tudo, mas se encontram em seus isolamentos do resto do mundo. Eles são desconfortáveis em suas obrigações sociais e em suas panelinhas, mas juntos tudo fica mais fácil. E aí, quando você acha que tudo está certo, alguém puxa o tapete sob os seus pés, eles se desentendem e a vida continua, mas não por muito tempo antes que eles se vejam frente a frente mais uma vez.

Paul Mescal como Connell em Normal People

 Adaptada do livro homônimo de Sally Rooney (pela própria autora junto a Alice Birch, dos fantásticos Lady Macbeth e ‘Succession’) através das mãos hábeis de Lenny Abrahamson (O Quarto de Jack) e Hettie Macdonald (‘Howard’s End’, Doctor Who), a série se ancora muito nas atuações de Daisy Edgar-Jones e Paul Mescal, que exalam a paixão pelos próprios personagens nos olhos e na dinâmica orgânica e bem coreografada entre ambos. Edgar-Jones faz de Marianne uma mulher feroz e reservada, ao mesmo tempo insegura e vibrante. Sua presença domina os ambientes, mas ela raramente tem noção do impacto que causa, presa em reflexões sobre o que os outros pensam dela, sobre o que Connell pensa dela. Mescal, por outro lado, constrói Connell com muita doçura, um rapaz incomodado por ser o centro das atenções, embora este seja o lugar que sempre ocupou com seus sorrisos largos e um jeito de estar eternamente preocupado com as outras pessoas. 

Nos momentos mais cruéis, eles discutem porque ele é incapaz de sequer chegar perto dela quando estão em público. Não por falta de afeto, mas por ter construído um muro de concreto entre seu lado racional e o seu lado sentimental. Quando ele tenta transpor este muro, é um processo doloroso e exigente, escancarado pela direção tão precisa ao complementar o trabalho dos atores, em close-ups que nos fazem ver exatamente o que ninguém mais quer ou pode ver.

Neste sentido, salta aos olhos a forma tão delicada com a qual Abrahamson e Macdonald optam por abordar as muitas cenas de sexo perpetuadas ao longo dos 12 episódios. A composição e a coreografia ajudam a contar o que eles estão sentindo e precisando em cada um daqueles encontros, entre si ou com demais parceiros. Existe um senso de intimidade que ultrapassa o corporal nas cenas dos dois juntos, ressaltado na forma como a direção prioriza detalhes que dizem muito mais do que palavras poderiam. Mãos desesperadas contra partes não-identificáveis de pele, toques suaves nos cabelos, o encaixe dos corpos e os momentos de êxtase pouco antes de um merecido sono são construídos com tanta delicadeza que não apenas conseguimos entender a diferença entre lascívia e vulnerabilidade quanto, mais de uma vez, é como se estivéssemos sendo intrusos apenas por estarmos assistindo aos episódios. Presenciamos algo que eles jamais sentiram conforto para compartilharem com outra pessoa e, por isso, é como se estivéssemos errados. Mas é difícil parar de olhar. 

Daisy Edgar-Jones como Marianne em Normal People

À medida que os anos passam e Marianne e Connell são forçados às responsabilidades adultas com a resistência universal de um millennial, o desespero que sempre acompanha o prazer carnal dá lugar a um inevitável contentamento com não serem capazes de fugir de estarem sempre nas vidas um do outro, mesmo que carreira e ambições não estejam a favor na maioria dos casos. Os motivos ora estúpidos, ora delicados que forçam um para fora da vida do outro, tão típicos da geração e mesmo assim tão indecifráveis para eles, e o emergente ímã que os conecta de volta nos melhores ou nos piores momentos fazem com que eles fiquem cada vez mais conformados com a ideia, ambos igualmente encantados pelo fato de jamais se desvencilharem de verdade. E, quando eles tentam, a dor passa até para o outro lado da tela e a série quase perde fôlego. Quase.

A beleza de tudo, no entanto, reside no fato simples de que um não depende do outro para romper com suas próprias limitações emocionais, embora naturalmente exista um apoio mútuo que poucas vezes se perde. Marianne consegue entender melhor seus próprios desejos e se sentir mais segura em sua pele com as intempéries do tempo e da vida, e não é a presença ou a ausência de Connell que faz isso — e o mesmo vale para ele em relação a ela. Sim, eles são irresistivelmente atraentes e atraídos um pelo outro, mas a história faz questão de manter claro que eles existem independentes, e que isso é o natural.

Desta forma, ‘Normal People’ é um olhar de rara sensibilidade sobre os relacionamentos de uma geração perturbada com o excesso de informação e os ruídos provocados pelo enclausuramento emocional. Justamente por isso, a maior ressalva é que talvez devesse vir com um aviso de gatilho. Porque, caro leitor, uma coisa que esta série faz é despertar sentimentos. Vá protegido. 

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Laysa Zanettihttps://cinepop.com.br
Repórter, Crítica de Cinema e TV formada em Twin Peaks, Fringe, The Leftovers e The Americans. Já vi Laranja Mecânica mais vezes que você e defendo o final de Lost.

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Mas tão logo percebe este lugar habitual, o público também enxerga que nem todas as peças se encaixam perfeitamente nos lugares que eram esperados neste jogo. Marianne é a garota quietinha e inteligente, mas também é sarcástica e sem o mínimo de paciência para levar desaforo para casa — do tipo que pede ao professor que “dê logo a advertência e siga em frente”. Ela também é uma das mais ricas e mora em uma verdadeira mansão com a mãe e o irmão.

Sua aproximação de Connell, que apesar de ser o craque popular também é o rapaz inteligente que não abandona os livros, ocorre no campo extraclasse justamente porque ele é de origem humilde e todos os dias vai à casa de Marianne buscar sua mãe, que trabalha para a família como faxineira. Um suposto jogo de poder entre os dois está sempre se invertendo. Se, na escola, ele é o popular e ela a excluída, fora dela o rapaz a admira mais do que gostaria de admitir. Ele está sempre em sua órbita, algo de que ela tem completa noção e que usa ao próprio favor, quando consegue dominar o medo e a rejeição.

Marianne e Connell em cena na série Normal People

O outro ponto que logo de cara já evidencia que ‘Normal People’ tem algo diferente a dizer é a rapidez com que vai direto ao ponto. Os dois têm uma relação ioiô, que começa nos meses finais do ensino médio e se estende por todo o começo da vida adulta, exatamente o período que a série cobre. Na escola, Connell e Marianne fingem que sequer se conhecem, mas não conseguem tirar as mãos um do outro dos portões para fora. O cinismo é o que os afasta — e depois os reúne, os afasta, os reúne, os afasta… você já entendeu.

Sem perder tempo, a série nos tira do ensino médio e nos leva para dentro do primeiro ano de Connell e Marianne na faculdade. Ela em seu curso e ele no dele, eles perderam contato e acabam se reencontrando sem querer quando o novo namorado de Marianne convida Connell para uma festa, sem saber nem mesmo que os dois se conhecem. Logo Marianne e Connell percebem como são inevitáveis na vida um do outro — e nós, junto. Quando eles se vêem, é como se não existisse mais nada em volta. Mas aqui as peças estão invertidas. Marianne, outrora a outsider, tem um barulhento grupo de amigos, enquanto Connell perambula sozinho pelos corredores e bibliotecas. É irônico, trágico e também bastante simpático. 

Esse desequilíbrio, aliás, é parte da graça, e vai se invertendo e nos desafiando ao longo de toda a temporada. Os episódios passeiam por grandes momentos dos primeiros anos adultos dos protagonistas, esclarecendo como cada encontro e desencontro provocou reações e evoluções diferentes nos dois.  

O segredo, aqui, parece ser a distorção ao mesmo tempo doce e dolorosa do romance adolescente e sua floração no mundo jovem-adulto. Você se apaixona por Marianne e Connell porque um é o que o outro precisa para se sentir confortável em sua própria pele, e isso se torna evidente pelo quão diferentes eles são em quase tudo, mas se encontram em seus isolamentos do resto do mundo. Eles são desconfortáveis em suas obrigações sociais e em suas panelinhas, mas juntos tudo fica mais fácil. E aí, quando você acha que tudo está certo, alguém puxa o tapete sob os seus pés, eles se desentendem e a vida continua, mas não por muito tempo antes que eles se vejam frente a frente mais uma vez.

Paul Mescal como Connell em Normal People

 Adaptada do livro homônimo de Sally Rooney (pela própria autora junto a Alice Birch, dos fantásticos Lady Macbeth e ‘Succession’) através das mãos hábeis de Lenny Abrahamson (O Quarto de Jack) e Hettie Macdonald (‘Howard’s End’, Doctor Who), a série se ancora muito nas atuações de Daisy Edgar-Jones e Paul Mescal, que exalam a paixão pelos próprios personagens nos olhos e na dinâmica orgânica e bem coreografada entre ambos. Edgar-Jones faz de Marianne uma mulher feroz e reservada, ao mesmo tempo insegura e vibrante. Sua presença domina os ambientes, mas ela raramente tem noção do impacto que causa, presa em reflexões sobre o que os outros pensam dela, sobre o que Connell pensa dela. Mescal, por outro lado, constrói Connell com muita doçura, um rapaz incomodado por ser o centro das atenções, embora este seja o lugar que sempre ocupou com seus sorrisos largos e um jeito de estar eternamente preocupado com as outras pessoas. 

Nos momentos mais cruéis, eles discutem porque ele é incapaz de sequer chegar perto dela quando estão em público. Não por falta de afeto, mas por ter construído um muro de concreto entre seu lado racional e o seu lado sentimental. Quando ele tenta transpor este muro, é um processo doloroso e exigente, escancarado pela direção tão precisa ao complementar o trabalho dos atores, em close-ups que nos fazem ver exatamente o que ninguém mais quer ou pode ver.

Neste sentido, salta aos olhos a forma tão delicada com a qual Abrahamson e Macdonald optam por abordar as muitas cenas de sexo perpetuadas ao longo dos 12 episódios. A composição e a coreografia ajudam a contar o que eles estão sentindo e precisando em cada um daqueles encontros, entre si ou com demais parceiros. Existe um senso de intimidade que ultrapassa o corporal nas cenas dos dois juntos, ressaltado na forma como a direção prioriza detalhes que dizem muito mais do que palavras poderiam. Mãos desesperadas contra partes não-identificáveis de pele, toques suaves nos cabelos, o encaixe dos corpos e os momentos de êxtase pouco antes de um merecido sono são construídos com tanta delicadeza que não apenas conseguimos entender a diferença entre lascívia e vulnerabilidade quanto, mais de uma vez, é como se estivéssemos sendo intrusos apenas por estarmos assistindo aos episódios. Presenciamos algo que eles jamais sentiram conforto para compartilharem com outra pessoa e, por isso, é como se estivéssemos errados. Mas é difícil parar de olhar. 

Daisy Edgar-Jones como Marianne em Normal People

À medida que os anos passam e Marianne e Connell são forçados às responsabilidades adultas com a resistência universal de um millennial, o desespero que sempre acompanha o prazer carnal dá lugar a um inevitável contentamento com não serem capazes de fugir de estarem sempre nas vidas um do outro, mesmo que carreira e ambições não estejam a favor na maioria dos casos. Os motivos ora estúpidos, ora delicados que forçam um para fora da vida do outro, tão típicos da geração e mesmo assim tão indecifráveis para eles, e o emergente ímã que os conecta de volta nos melhores ou nos piores momentos fazem com que eles fiquem cada vez mais conformados com a ideia, ambos igualmente encantados pelo fato de jamais se desvencilharem de verdade. E, quando eles tentam, a dor passa até para o outro lado da tela e a série quase perde fôlego. Quase.

A beleza de tudo, no entanto, reside no fato simples de que um não depende do outro para romper com suas próprias limitações emocionais, embora naturalmente exista um apoio mútuo que poucas vezes se perde. Marianne consegue entender melhor seus próprios desejos e se sentir mais segura em sua pele com as intempéries do tempo e da vida, e não é a presença ou a ausência de Connell que faz isso — e o mesmo vale para ele em relação a ela. Sim, eles são irresistivelmente atraentes e atraídos um pelo outro, mas a história faz questão de manter claro que eles existem independentes, e que isso é o natural.

Desta forma, ‘Normal People’ é um olhar de rara sensibilidade sobre os relacionamentos de uma geração perturbada com o excesso de informação e os ruídos provocados pelo enclausuramento emocional. Justamente por isso, a maior ressalva é que talvez devesse vir com um aviso de gatilho. Porque, caro leitor, uma coisa que esta série faz é despertar sentimentos. Vá protegido. 

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Repórter, Crítica de Cinema e TV formada em Twin Peaks, Fringe, The Leftovers e The Americans. Já vi Laranja Mecânica mais vezes que você e defendo o final de Lost.

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