Somos o que Somos
Depois do fenômeno Corra! (2017), o mundo aguardava atentamente o próximo passo do diretor estrela Jordan Peele. Natural. Assim, Nós chega com a expectativa e promessa de ser um dos filmes mais interessantes deste início de 2019 – e felizmente podemos afirmar que o diretor mantém seu nível de excelência.
Usando muitas das mesmas batidas de Corra!, Peele entrega seu “novo episódio de Além da Imaginação” estendido em um longa-metragem. Novamente também, o diretor aborda questões sociais nas entrelinhas de seu terror – desta vez, menos pungentes (mas ainda temos alegorias sobre as lutas de classes – os mais afortunados e os desprovidos). E embora o cineasta não aponte para questões raciais (de forma tão direta), o protagonismo de uma família negra numa produção mirada ao grande público é um dos maiores méritos conquistados pelo status de Peele.
Na trama, a família Wilson viaja para suas tão sonhadas férias de verão. Temos a mãe Adelaide (Lupita Nyong´o), o pai (Winston Duke), a filha (Shahadi Wright Joseph) e o filho (Evan Alex). Tudo parecia perfeito, mesmo com certa relutância da matriarca em ir a uma praia específica nas redondezas – com direito às traquinagens de qualquer comédia familiar. No local também se encontram os personagens de Elisabeth Moss, Tim Heidecker, e suas filhas gêmeas Cali e Noelle Sheldon. Porém, é com a chegada de outra família – cópias quase perfeitas da família Wilson – ao local, que o terror pisa no acelerador sem diminuir a eventos trágicos.
Jordan Peele, assim como os grandes diretores de suspense, sabe muito bem brincar com nosso imaginário. A cena de abertura – uma dos melhores do longa – é a prova disso. Sem qualquer conexão aparente com o resto do filme (é o que pensamos de início), o cineasta introduz um prólogo gélido e arrepiante, no qual uma menininha se perde dos pais num parque de diversões à beira mar nos anos 1980. Só por este trecho, Nós já valeria o ingresso. A trilha sonora incisiva nos deixa grudados na tela, esperando o que está por vir – é o prenúncio de algo ruim. Peele não se apressa e deliberadamente cria um compasso rítmico que estende ao máximo a tensão implícita no momento.
A introdução é brilhante, porém, o filme perde o gás em seu segundo e terceiro atos – nada que comprometa o resultado do todo. O que ocorre é que em seu segundo ato, Nós se torna declaradamente um filme de terror slasher (mesmo pairando acima do que é feito no subgênero), com personagens tentando sobreviver a seus perseguidores de qualquer maneira possível. Temos cenas em barcos, em casas e em carros. É padrão do terror, mas Peele o faz com classe.
No terceiro ato é quando precisam vir as explicações e daí percebemos pequenas lacunas não preenchidas no texto do diretor. Não que tudo precise ser explicado, pelo contrário, é muito melhor quando podemos responder por nós mesmos. Mas Peele se propõe a contar tudo, acredite, e termina por passar um pouquinho do ponto (até em questão de reviravoltas).
O filme ganha novas conotações em seu resultado, e definitivamente tem recheio o suficiente para diversas teorias e conclusões. Outro ponto que precisa ser ressaltado são as atuações deste elenco pra lá de empenhado. Em questão de performances, Nós não é um filme fácil, pois aqui lidamos com o exagero, com o fantástico e, por que não, com o ridículo. O elenco tira de letra, em especial Lupita Nyong´o, que abraça a insanidade com gosto e arrisca muito como Adelaide, mas principalmente como Red – sua gêmea do mal.
A direção de Peele é encorpada e suntuosa. O roteiro, se não é milimetricamente confeccionado, ao menos ganha muitos pontos pelos riscos que toma, e pela construção de um produto mirado às massas totalmente fora da caixinha. Que mais cineastas arrisquem como Peele e que contribuam para a renovação do cinema de Hollywood.
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