quarta-feira , 8 janeiro , 2025

Crítica | ‘O Auto da Compadecida 2’ conta com ótimas performances, mas repete fórmulas em uma previsível narrativa

Em 2000, Guel Arraes encabeçava o que apenas podemos considerar um dos melhores filmes da história nacional: ‘O Auto da Compadecida’. Baseado na obra de Ariano Suassuna, o longa logo caiu nas graças do público e da crítica, funcionando como uma sólida adaptação cinematográfica que contou com performances memoráveis e uma celebração da cultura nordestina da melhor maneira possível. Mais de duas décadas depois, somos convidados a retornar para esse exuberante cosmos com a aguardada sequência O Auto da Compadecida 2 – que chega aos cinemas no próximo dia 25 de dezembro.

A trama nos leva de volta a Taperoá e apresenta o adorado Chicó (Selton Mello) trabalhando como uma espécie de contador de histórias para os turistas que visitam a região. Para conseguir sobreviver em meio à devastadora seca do sertão, ele narra as peripécias de seu melhor amigo, João Grilo (Matheus Nachtergaele), que foi assassinado por um cangaceiro, julgado em um tribunal divino com a presença do Diabo, de Jesus e de Nossa Senhora de Aparecida, e ressuscitado em um milagre inesperado. Porém, após voltar dos mortos, ele desapareceu mundo afora, deixando para trás apenas resquícios de uma lenda que atrai pessoas do Brasil inteiro – e que permite que Chicó se sagre um poeta criativo e habilidoso para faturar alguns trocados.



O Auto da Compadecida 2

As coisas viram de cabeça para baixo quando João Grilo, após aventurar-se por aí, retorna à cidade e descobre que é tratado como um ídolo – mesmo não acreditando que foi ressuscitado por Nossa Senhora e que teve apenas sorte de o tiro ter passado de raspão. Entretanto, conhecendo as artimanhas dessa icônica dupla, ambos unem forças para tirar proveito dessa fama recém-adquirida e se envolver com uma fervorosa eleição para prefeito que pode ditar os rumos de Taperoá nos anos seguintes. E, apesar das ótimas performances e de um cuidado estético que navega pelo realismo mágico e pela teatralidade cênica, a obra posta-se como uma continuação desnecessária e um tanto quanto previsível.

O grande obstáculo enfrentado pela produção é sua falta de ousadia: em outras palavras, enquanto os diálogos são fortes e a caracterização dos personagens é condizente aos exageros propositais dos “tipos sociais” retratados, a estrutura macrocósmica do roteiro parece ter medo em dar um passo maior que a pena – valendo-se de incursões predecessoras para construir uma cíclica aventura cômica. Enquanto o caráter episódico e cartunesco traz elementos da peça original e do filme lançado em 2000, o que nos incomoda é o desperdício de potencial (principalmente em relação ao terceiro ato) e uma frustração que nos faz ansiar por mais após uma conclusão agridoce.

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O Auto da Compadecida 2

Um outro problema emerge com a montagem de Fábio Jordão: é costumeiro que produções desse gênero mergulhem em uma edição rápida, criando um dinâmico rítmico para garantir envolvimento completo por parte dos espectadores. Contudo, Jordão lança-se a um frenesi descompensado que aposta em diversas referências da sétima arte e que cria uma mistura exaurível que não nos permite conectar, ao menos a princípio, com o que nos é mostrado. Os cortes bruscos e secos são constantes no arco em que reúne João Grilo e Chicó, retraindo-se apenas com a chegada do segundo ato e “acalmando os nervos” para permitir uma navegação mais fluida e que oscila de modo competente entre o drama e a comédia.

Enquanto o roteiro, assinado por Arraes, João Falcão, Adriana Falcão e Jorge Furtado, peca na condução do enredo, cabe ao elenco dar o máximo de si para que cada um dos diálogos tenha o timing correto e a entoação necessária para despertar determinada emoção no público. Mello faz um trabalho primoroso como Chicó, mantendo-se fiel às características exploradas no filme original à medida que promove um amadurecimento mandatório ao protagonista; Eduardo Sterblitch se reitera como um ator camaleônico ao encarnar o radialista e candidato a prefeito Arlindo – estruturando-se dentro de uma apaixonante hipérbole que divide com a ótima Fabiula Nascimento como a descompensada socialite Clarabela Catação; Humberto Martins diverte-se ao encarnar o poderoso e ambicioso Coronel Ernani, funcionando como um dos antagonistas da obra.

O Auto da Compadecida 2

Mas é Nachtergaele quem rouba completamente os holofotes com uma interpretação aplaudível e irretocável: se o astro já havia imortalizado João Grilo tantos anos atrás com um respeito inegável pelo personagem, aqui ele se permite imortalizar o legado deixado pela persona em uma condução aprazível e catártica – e isso não é tudo: sem dar muitos spoilers, Nachtergaele estende sua versatilidade artística para outras inflexões que nos tiram o fôlego e que, por um breve momento, o tornam irreconhecível nas telonas.

Nota-se, também, um esmero imagético no tocante ao design de produção: o início do primeiro ato abusa do CGI em uma artificialidade tristonha e melancólica; todavia, quando chegamos em Taperoá, notamos que a construção dos cenários se rende ao ápice das investidas teatrais, seja arquitetura dos principais edifícios, nas cores contrastantes e até mesmo na configuração da paisagem natural. Há uma emblemática amálgama de referências estéticas que oscila da fantasia ao expressionismo, do realismo ao folclórico, e que firma uma nostálgica originalidade que enche nossos olhos. E, nesse tocante, Arraes e Flávia Lacerda, assinando a direção do longa, sabem como deixar que os cenários façam parte ativa da história – mesmo que apenas como reflexo das emoções dos personagens.

Homem com chapéu e barba, fumando ao ar livre.

O Auto da Compadecida 2 é divertido do começo ao fim e traz de volta todo o nosso apreço por esse memorável universo literário e cinematográfico – porém, não podemos fazer vista grossa aos múltiplos erros que estendem-se ao longo de pouco mais de uma hora e quarenta de duração. Em outras palavras, é notável como essa sequência é desnecessária, mas tem o seu valor artístico ao contar com um elenco nada menos que estelar.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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A trama nos leva de volta a Taperoá e apresenta o adorado Chicó (Selton Mello) trabalhando como uma espécie de contador de histórias para os turistas que visitam a região. Para conseguir sobreviver em meio à devastadora seca do sertão, ele narra as peripécias de seu melhor amigo, João Grilo (Matheus Nachtergaele), que foi assassinado por um cangaceiro, julgado em um tribunal divino com a presença do Diabo, de Jesus e de Nossa Senhora de Aparecida, e ressuscitado em um milagre inesperado. Porém, após voltar dos mortos, ele desapareceu mundo afora, deixando para trás apenas resquícios de uma lenda que atrai pessoas do Brasil inteiro – e que permite que Chicó se sagre um poeta criativo e habilidoso para faturar alguns trocados.

O Auto da Compadecida 2

As coisas viram de cabeça para baixo quando João Grilo, após aventurar-se por aí, retorna à cidade e descobre que é tratado como um ídolo – mesmo não acreditando que foi ressuscitado por Nossa Senhora e que teve apenas sorte de o tiro ter passado de raspão. Entretanto, conhecendo as artimanhas dessa icônica dupla, ambos unem forças para tirar proveito dessa fama recém-adquirida e se envolver com uma fervorosa eleição para prefeito que pode ditar os rumos de Taperoá nos anos seguintes. E, apesar das ótimas performances e de um cuidado estético que navega pelo realismo mágico e pela teatralidade cênica, a obra posta-se como uma continuação desnecessária e um tanto quanto previsível.

O grande obstáculo enfrentado pela produção é sua falta de ousadia: em outras palavras, enquanto os diálogos são fortes e a caracterização dos personagens é condizente aos exageros propositais dos “tipos sociais” retratados, a estrutura macrocósmica do roteiro parece ter medo em dar um passo maior que a pena – valendo-se de incursões predecessoras para construir uma cíclica aventura cômica. Enquanto o caráter episódico e cartunesco traz elementos da peça original e do filme lançado em 2000, o que nos incomoda é o desperdício de potencial (principalmente em relação ao terceiro ato) e uma frustração que nos faz ansiar por mais após uma conclusão agridoce.

O Auto da Compadecida 2

Um outro problema emerge com a montagem de Fábio Jordão: é costumeiro que produções desse gênero mergulhem em uma edição rápida, criando um dinâmico rítmico para garantir envolvimento completo por parte dos espectadores. Contudo, Jordão lança-se a um frenesi descompensado que aposta em diversas referências da sétima arte e que cria uma mistura exaurível que não nos permite conectar, ao menos a princípio, com o que nos é mostrado. Os cortes bruscos e secos são constantes no arco em que reúne João Grilo e Chicó, retraindo-se apenas com a chegada do segundo ato e “acalmando os nervos” para permitir uma navegação mais fluida e que oscila de modo competente entre o drama e a comédia.

Enquanto o roteiro, assinado por Arraes, João Falcão, Adriana Falcão e Jorge Furtado, peca na condução do enredo, cabe ao elenco dar o máximo de si para que cada um dos diálogos tenha o timing correto e a entoação necessária para despertar determinada emoção no público. Mello faz um trabalho primoroso como Chicó, mantendo-se fiel às características exploradas no filme original à medida que promove um amadurecimento mandatório ao protagonista; Eduardo Sterblitch se reitera como um ator camaleônico ao encarnar o radialista e candidato a prefeito Arlindo – estruturando-se dentro de uma apaixonante hipérbole que divide com a ótima Fabiula Nascimento como a descompensada socialite Clarabela Catação; Humberto Martins diverte-se ao encarnar o poderoso e ambicioso Coronel Ernani, funcionando como um dos antagonistas da obra.

O Auto da Compadecida 2

Mas é Nachtergaele quem rouba completamente os holofotes com uma interpretação aplaudível e irretocável: se o astro já havia imortalizado João Grilo tantos anos atrás com um respeito inegável pelo personagem, aqui ele se permite imortalizar o legado deixado pela persona em uma condução aprazível e catártica – e isso não é tudo: sem dar muitos spoilers, Nachtergaele estende sua versatilidade artística para outras inflexões que nos tiram o fôlego e que, por um breve momento, o tornam irreconhecível nas telonas.

Nota-se, também, um esmero imagético no tocante ao design de produção: o início do primeiro ato abusa do CGI em uma artificialidade tristonha e melancólica; todavia, quando chegamos em Taperoá, notamos que a construção dos cenários se rende ao ápice das investidas teatrais, seja arquitetura dos principais edifícios, nas cores contrastantes e até mesmo na configuração da paisagem natural. Há uma emblemática amálgama de referências estéticas que oscila da fantasia ao expressionismo, do realismo ao folclórico, e que firma uma nostálgica originalidade que enche nossos olhos. E, nesse tocante, Arraes e Flávia Lacerda, assinando a direção do longa, sabem como deixar que os cenários façam parte ativa da história – mesmo que apenas como reflexo das emoções dos personagens.

Homem com chapéu e barba, fumando ao ar livre.

O Auto da Compadecida 2 é divertido do começo ao fim e traz de volta todo o nosso apreço por esse memorável universo literário e cinematográfico – porém, não podemos fazer vista grossa aos múltiplos erros que estendem-se ao longo de pouco mais de uma hora e quarenta de duração. Em outras palavras, é notável como essa sequência é desnecessária, mas tem o seu valor artístico ao contar com um elenco nada menos que estelar.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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