Ariano Suassuna foi um dos autores mais leves da literatura brasileira. Sempre muito bem-humorado, sua forma de ver a vida, mesmo nos momentos de maior aperreio, foram transpostas nas suas histórias com um DNA inteligente e engraçado de relatar os acontecimentos. De sua grande obra, os autos foram os textos que mais se destacaram, e eventualmente se transformaram em adaptações cinematográficas dentre as quais ‘O Auto da Compadecida’ alcançou, tal qual o texto homônimo, a alcunha de clássico – do cinema. O filme, lançado nos primeiros meses do novo milênio, conquistou o público de tal modo que se tornou intocável. Porém, vinte e cinco anos depois, essa história ganhou um novo capítulo, uma sequência não escrita pelo seu autor original, mas cujo resultado certamente seria aprovado por ele. De presente de Natal esse ano, chega aos cinemas brasileiros o aguardado ‘O Auto da Compadecida 2’.
Depois da morte e ressurreição de João Grilo (Matheus Nachtergaele), este saiu pelo mundo, enquanto Chicó (Selton Mello) ficou em Taperoá, contando sua história. Mas quase três décadas se passaram e os amigos não se reencontraram…até agora. Meio repentinamente, João Grilo volta à sua cidade, para a alegria de seu melhor amigo. Porém, a notícia de seu retorno corre os quatro cantos, e as pessoas passam a tratá-lo como um santo, um milagre vivo. Se por um lado isso pode até ser bacana, tanta atenção acaba irritando o Coronel Ernani (Humberto Martins) e o radialista Arlindo (Eduardo Sterblitch), ambos candidatos à prefeitura local. Para sair dessa enrascada não intencional, Chicó e João Grilo vão ter que apelar para a esperteza que lhes é nata – com uma pitadinha de boa sorte.
Se no texto original ‘O Auto da Compadecida’ o tom é da farsa e da comicidade, dessa vez o roteiro de Guel Arraes e João Falcão se aprofunda em temas mais sérios do sertanejo, trazendo, com a devida seriedade e respeito, as muitas dificuldades que o povo do sertão enfrentou e enfrenta até hoje. A passagem temporal situa a nova história na década de 1950, já sinalizando alguma transição com a chegada de certas modernidades (a rádio, uma loja de eletrodomésticos, turistas) e o tímido desenvolvimento de Taperoá. Ao mesmo tempo, o roteiro não se furta de sinalizar qual é o preço pago por cada uma dessas supostas melhorias na cidade, cujas consequências facilmente o espectador pode enxergar no mundo real.
O que mais impressiona no roteiro é que, não tendo sido escrito por Suassuna, ele é embebido na essência do escritor paraibano. Os diálogos ágeis e perspicazes são disparados com destreza por um elenco à vontade em reviver seus papéis. É realmente impactante como os temas vão se desenrolando pelo falar de Chicó e de João Grilo com tanta naturalidade; tal qual os outros personagens com quem contracenam, também o público é carinhosamente ludibriado pelas artimanhas dessa dupla, o que demonstra que a fórmula do riso dessa dupla se mantém forte.
Para o novo Auto, a cinematografia foi elaborada a partir de cenários de maquete e planos mais fechados, o que desafiou e elevou a fotografia de Gustavo Hadba para uma atmosfera lúdica, quente e amorosa. Os tons terrosos e laranjas imprimem não só um sertão da seca, mas também cheio de vida, de fervor. O contraste da fotografia que faz parecer que é sempre meio-dia no filme com os figurinos mais claros e o cenário que parece um presépio em desconstrução tornam, como diria a personagem Clarabela, tudo muito autêntico.
Se Chicó e João Grilo são o coração de ‘O Auto da Compadecida 2’, as novas adições ao elenco promovem frescor e vigor às peripécias dos amigos. Fabiula Nascimento (Clarabela) é um segundo sol nesse sertão, com sua personagem de lindos vestidos e inocência maliciosa; Eduardo Sterblitch encontra um personagem para desenvolver seu vozeirão de conquistador com o radialista Arlindo; Taís Araújo, firme como uma advogada, confere ares de mãe justa à Aparecida; Luís Miranda entrega malemolência ao camaleônico Antônio do Amor; Humberto Martins surge irreconhecível como o Coronel Ernani e Virgínia Cavendish e Henrique Diaz, embora sejam do elenco original, retornam com intensidade aos seus papéis – ela, como uma Rosinha empoderada, livre, e ainda assim, apaixonada; ele, como o jagunço duas caras tal qual no filme anterior.
Se todos esses elementos funcionam é porque os diretores Flávia Lacerda e Guel Arraes encontraram o equilíbrio na produção, entre repaginar pontos fundamentais os quais os espectadores esperam encontrar e criar novos elementos que dê sentido à jornada desses personagens. E é aí, justamente no porquê das coisas nos caminhos de Chicó e João Grilo, é aí que cai um cisco no olho. Ou dois.
Primoroso, ‘O Auto da Compadecida 2’ dá sentido, profundidade e emoção à querida história de Ariano Suassuna. Mais trabalhado dramaturgicamente, mostra que a fé é a base e o alimento do brasileiro. Ainda bem que temos, e sempre tivemos, fé nesses dois malucos, os nossos heróis Chicó e João Grilo.